quinta-feira, 30 de janeiro de 2014
Aaron Siskind, 1944
Aqui, na cervejaria Bürgerbräukeller, entabulo conversa com o garçom, que me traz logo uma cerveja e inicio a primeira leitura do Testamento para El Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis – que sugere o total isolamento para que se possa desvelar o mais profundo do ser humano. O mesmo Nikos disse em algum lugar: – As únicas coisas que importam na vida: idéias, frutas, mulheres.
O banheiro da cervejaria Bürgerbräukeller – arruinado, sujo. Almas acossadas em cada recanto sombrio. O dono do bar não é o Esteves, aqui não é a Tabacaria, aquele que me fita da mesa ao fundo não é o Fernando Pessoa. Se não é o Fernando, quem é? É Jorge Luis Borges e solicita que eu leia um texto de sua autoria intitulado “A escrita do Deus”: “Perdi o número dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui jovem e podia caminhar por esta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura de minha morte, o fim que me destinam os deuses. Com a profunda faca de pedernal abri o peito das vítimas e agora não poderia, sem magia, levantar-me do pó”.
Que estou na treva, estou. Sem magia, não me levanto jamais do pó nem alcanço o copo de água. Sem magia eu não ressuscito nem pra beijar a boca da Ingrid, aquela safada. Minha alma – agora sei – foi vista pela última vez na página 72 de “O livro perdido de Tácito”. Acontece que, numa faxina aqui em casa, perdi “O livro perdido de Tácito” e só Deus sabe quando vou encontrá-lo de novo.
Por enquanto minha alma continua perdida e eu aproveito para seguir religiosamente o conselho do espanhol Pablo Picasso para uma vida perfeita: De manhã, missa; de tarde, touradas; à noite, bordel.
Escrevo, aqui na cervejaria Bürgerbräukeller, num guardanapo: “Deus morreu nos meus braços naquele sábado em que eu e Júlia nos amávamos no Calvário. A língua vai para onde quer, o espírito sopra onde quer, o Olho por onde espio o vento é o Olho por onde o vento me espia. Meus olhos vão ver o paraíso, sim, mas serão olhos apodrecidos. ”
Ellen Rennard, 2008
A noite acaba feito gim. O
senhor K. não é uma criatura débil como uma haste de verbena; e até
afirmou, em determinada ocasião, que o excesso é fundamental; que o excesso leva ao Castelo da Pureza;
disse, igualmente, que a vida lhe fugia em cada sopro que vazava dos
lábios finos do destino. Tinha um olhar, o senhor K., de ser gerente do
The Bay Hotel --- mas ele é o gerente do The Bay Hotel ---, apenas
esqueceu por um instante. Seus primeiros pensamentos da manhã já se
parecem com os seus últimos pensamentos do dia. A cabeça, a do senhor
K., mais bruta do que a cabeça do açougueiro Hamm. Apenas o tédio é, nesse meio-dia de verão, mais bruto, e cáustico.
Não aspira, o senhor K. não aspira nunca ao céu. Como Orfeu, parece que
está sempre recolhendo no vaso da alma, a um só tempo, um sáurio
gravemente ferido e uma deusa com tímpanos de chuva. A noite acaba feito
gim. Foi
sugerido ao senhor K. que, entre as cinco irmãs — escolhesse uma—, e o
senhor K. apontou para Joana, a única a quem a natureza tinha dado todas
as rosas do amor. Todas as outras quatro irmãs mais pareciam ter seiva
de areal, isto é, eram secas. Eu convido Joana para as fadigas de uma noite de núpcias ou o lúbrico serpentário da língua na nuca.
Joana, a boa menina, lânguida após um copo de gim ou mais lânguida se o
senhor K. tenta acariciar o musgo molhado entre suas coxas. A noite
acaba feito gim. Joana
guarda no relicário íntimo a sua fragilidade e a razão de preferir uma
Cassiopéia boreal a uma longa temporada no Gehenna fumegante; entre
ácaros e lesmas, entre chifres e cascas de cigarra. Um sopro inaudível conta à Joana que ela sabe mais que as plantas e os peixes; que ela sabe mais que os santos.
Joana morena, olho verde, cabelo comprido. Por causa dela o galã da
noite --- o senhor K.--- poderia até entoar antífonas religiosas na Ilha
da Ilusão ou, após beber litros de gim, cairia de língua nas peles, nos
pêlos dessa Joana de circunstância --- dessa mulher que enxágua retinas
--- e se entrega, de quatro, feito uma piscina molhada, ao senhor K.. A noite acaba feito gim.
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