quarta-feira, 15 de maio de 2013

Edward Weston, 1942


A medusa Goaëc
A medusa Goaëc acha que possui muitos pecados, por isso não escuta mais o tímpano da chuva. A medusa Goaëc congela o espírito da potência e cultua o sentimento excessivo da culpa e petrifica o vento.
A medusa Goaëc só pode ser vencida com a harmonia e a justa medida. 
         Conta a lenda que, quem visse a cabeça da medusa Goaëc, ficava petrificado. As Graias podem ser vistas por aqui: as Graias, mencionadas por Apolidoro na Biblioteca (II, iv, 2), de belo rosto, irmãs, grisalhas desde o nascimento: mulheres velhas que foram procuradas por Perseu, que lhes conferiu a missão de trazer a cabeça da medusa Goaëc para Polidectes. Se a medusa Goaëc representa a imagem excessiva da culpa, cortar sua cabeça é dominar de forma durável o sentimento excessivo: ver a si mesmo sem deformação para menos ou para mais: o conselho é não exagerar nem minimizar a culpa.
         Com a foice decepo a cabeça da medusa Goaëc: os salgueiros e as montanhas do balneário de Gegenwelt, ora brancos, ora escuros, voltam a florir.
         Deito a cabeça da medusa Goaëc nas folhas de hortelã. 
         Eu narro com detalhes precisos o ambiente onde se desenrola o crime que cometi com minha foice e a técnica que a medusa Goaëc usa para petrificar tudo quanto lhe apareça pela frente: narro, igualmente, o tipo de bebida que ela toma: é o gim que perfuma sua boca: não digo nunca que essa mulher terá sua cabeça decepada, mas escrevo a história como se o leitor já soubesse: o efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.
         A noite é a angústia: inaudíveis ventos antes da meia-noite: o isqueiro de prata: espero, no meio dos grous, a entoar o Cântico dos Cânticos, que tragam a cabeça da medusa Goaëc jogada no lago. Nessa condição inumana de estar sem cabeça, a medusa Goaëc excede, ultrapassa as raias do comum, visto que ao perder a clareza do juízo, sai do normal, parece uma desatinada.

 
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So in Love,
com Ella Fitzgerald (1917-1996)

Ver 5 obras de arte
da Galeria Saatchi

Vedrana Devic


Giuseppe Taras


Astrid M. G. Rubie


Luann Ostergaard


Isabel Alfarrobinha


 
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Audrey,
com David Brubeck (1920-2012)
http://www.youtube.com/watch?v=06u6wwwKln

Auguste Lesouëf, 1912


          Elisa nunca fica de costas para as jarras cheias d’água na sala e, à mesa, talheres, prato, copo e o salmão grelhado. Ao canto da longa mesa, espiando o céu pela vidraça, Elisa escuta o silêncio, atenta ao que nas coisas está sempre escutando! Ainda lembro dela arrancar das jarras o vidro, contudo, sem vidro, não há jarras.
          Ela paira nesta sala de jantar e lê as Breves memórias de Alexandros Apolonios. As orações que Elisa faz não purificam as árvores lá fora. O amor é o menino em chamas no tombadilho, é a pata esmagada do cão por um trem, sobretudo, o amor conduz à elegância e faz com que a seriedade fúnebre suma na curva da açucena ou toque um noturno em sua própria coluna vertebral.
          Nessa manhã antiga, à sombra de árvores seculares, e também à sombra das jeunes filles proustianas, eu, definitivamente, decidi que não posso andar por aí com as jarras cheias d’água de Elisa. Mas posso consentir que alguém queira escutar o silêncio que Elisa escuta. Se aqui eu estivesse com as jarras, uma em cada ombro, o máximo cuidado teria para que não caíssem, as jarras, nas pedras. Sejamos reverentes à verdade sóbria e pura: nenhum de nós nunca chegou a existir para que houvesse alguma possibilidade de paraíso após o último suspiro.
          Tão absolutas as jarras cheias d’água de Elisa. Mas tão maciçamente seca e pétrea a caveira. Tão jarras d’água as jarras de Elisa. Só com elas Elisa pode ver a estrela.
          Imersa no vento, onde respira, Elisa aprende que a vida é vã como a sombra que passa, e que as jarras são jarras, mais que sombras, porque jarras fazem sombra e nunca sombras fazem jarras.

Max Thorek, 1930


O venerável superior Hans Daff, da abadia de Wassal, no balneário de Ó, põe os óculos redondos e, fingindo que folheia com unção o vago registro no caderno católico, não deixa de observar que, ali na sacristia, a nuca da menina é perfumada.

O venerável convida a menina para que sente em seu colo. Quinze anos tem Laurinha; o venerável espera que saiam todos e a mão com o grosso anel de ouro enfia-se no musgo entre as coxas da menina que ainda não sabe, que ainda não pode saber.

Os lábios molhados da menina, a nuca perfumada, o repique dos sinos. Alguns padres desfiam o rosário no átrio.
Aqui é o balneário de Ó envolto em neblina, onde atracam as barcas que descem o rio. Folhas do tamarindo caem, num abandono previsível, e, se erguermos um pouco os olhos, deparamos também com aquele céo antiqüíssimo e monótono. Contudo, o que se percebe mesmo é que o vento e os homens, as pedras e as mulheres só cuidam de si, nunca desconfiam que, nesse minuto, na abadia de Wassal, o venerável Hans força a menina a ficar de quatro e a beijar o crucifixo.

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Madredeus