terça-feira, 14 de maio de 2013

Sarah Moon, 1989


Quando o barco camaroeiro fincou a proa no istmo de areia à entrada do estuário, escutei George Gurdjieff que pregava aos peixes:

         Não morram sem criarem uma alma; caso contrário, nada sobreviverá à morte. Cristalizem o ser de tal maneira que a morte não possa destruí-los. Mas vocês não nasceram com ele: terão de criá-lo.

       Apreciando de olhos abertos o fino da vida, em seu escondido cada um reina, porque em seu escondido cada um escreve que o prazer da sombra e dos aromas agrestes entram para a alma de certo recordar. Encosto o tímpano no pulmão da baleia jubarte: os olhos entortados, ora adormecidos: então respiro bem na beira do nada para pressentir aquilo que, sereno, cresce dele e percebo que esse nada pronuncia coisas que nunca se poderia dizer que foram ditas, tal a força do silêncio que nelas viçam.
       Todo domingo eu trago na boca a carniça que fede, por isso bebo no mar salgado, a ver se curo o mau hálito: sim, não é para se ter medo dos ramos desse domingo. As árvores manifestam a forma corporal do vento, e conseguem sugerir com claridade o que há de criativo no vazio, a inextinguível frescura do campo do senhor Buddha. O vazio imaculado é a nossa verdadeira natureza: o silêncio mental, a culminância de todo som percebido interiormente, é consequência da meditação, procedimento pelo qual se seguem as imagens, os pensamentos e os sons até a sua raiz no meio do mais íntimo sossego: a Iluminação é um estado de “ser sem esforço” (sahaya): uma planta repleta de seiva: serenidade natural.
       As palavras ou as eloquentes-ocas: as vibrantes de infâmia: as rubras de sabedoria: há certos mares que não devem ser vistos antes de envelhecermos: a virgindade da água.
         E ser tão só pra ser um sonho.
       Saio exaurido das ancas de Gregoróvia: o perfume da santidade que ela acalanta: uma luz sombreando e iluminando a fauce sombria: a cerca de hibiscos e o quintal: o vento grego: antes que eu a penetre com a enguia de fogo, ela pede:
         Não com tanta força”.
       Arranco lá do escuro de mim a lucidez de um instante: adágio de Dvorak: escuto o que Gregoróvia entoa de sua garganta:
         Devora-me mais uma vez”.
       Mal enxugada na cama: ela acalma sua pele com pensar no  vento: eu afasto as cortinas que ondulam ao sabor do vento marítimo: leve e feliz é o meu desejo: leve e feliz é o desejo dela: o fogo do aroma: estamos , aldo a lado, alados, sozinhos no fundo de um céu muito mais que silvestre
         Gregoróvia implora que eu passe a língua na sua clavícula, na sua anca, na sua música, no seu nada.

Viktor Novatski, 1977


Poison grows in this dark


Hexâmetro pintado no peristilo da casa dos amantes: Amantes ut apes vitam mellitam exigunt. “Amantes, como as abelhas, vivem no mel”.
         A luz calcina paredes do quarto da casa dos amantes: a chama está de pé na casa dos amantes: e as sombras?: lacradas. Não sei reconciliar-me com minha sombra: até a sombra deve ter uma sombra: pólen, haste, poussin.
          O único meio de produzir um discurso apto a dizer o profundo será dobrar-se a todos os vendavais jazzísticos da língua: desejo para o meu amor a vegetação dos ventos que corre nas minhas veias pagãs.
         Leio, apesar do insidioso cansaço que me abate nessa hora tardia, um in-fólio de Espinosa que afirma que “a alma humana não conhece o próprio corpo nem sabe que este existe; que a alma humana é a própria alma; que a essência das coisas produzidas por Deus não envolve a existência”.
         A língua é um sistema em contínuo desequilíbrio. Se levada ao extremo, alucina o adágio fugace, depois encontra o estame do som. Enxugar o gelo com a língua: inútil. Enxugar as águas da praia do Grou com a língua: inútil. Como explicar a língua de frauta ruda, a língua de agreste avena, a língua de Ur a uma tartaruga morta? a um ventilador quebrado?
         Cala-te, ó língua putrefata. Cala-te, ó pó da língua.
         Se eu trouxer a caldeirada de enguia para a única terrina na mesa, então queime, ó língua, queime beatos e quiabos: queime, ó língua, queime hóstias e crucifixos, depois escute, com a língua do tímpano: o “Tchibum”, de David Hockney; o “Whaam”, de Lichtenstein; “As carpas”, de Hokusai.
         Com a cabeça envolta em mel, com a cabeça envolta em tempestade, a língua atiça a torre de Babel, a língua baba a planta venenosa no pulmão do óbvio, e, com a espinha do peixe Capelo (Synaptura lusitanica), engasga os que não escutam a chuva na vidraça, os que apedrejam as finas linhas de Klee, os que consideram os mantras de Aruanda um delito e detestam a bela voz de Teresa Salgueiro: https://www.youtube.com/watch?v=kpCk3fJU-g4.