terça-feira, 29 de outubro de 2013
Miki Carmi
K. escreve uma carta
ao filósofo Hervum: “A Jarra de Heidegger (Das Ding/A Coisa) é uma imagem e
imagem não tem enigma. Não custa nada frisar que a Coisa existe em sua exata
natureza e persevera – atua – desprendida da figuração, e é provável que tenha
dado origem ao deus babilônio Shamash; às cocléias, homares e conclins; à
peônia que pende rente à neve; ao bate-bate de atabaque do batuque; ao acaso
que impera. A Coisa – o Outro em exclusão interna. Escavar na ilusão este ponto
(.) – quantum – em que a ilusão mesma se transcende, se arrasa, confessando que
aí está apenas como significante: um exemplo – a palavra ‘Jarra’ –, de ‘A Jarra
de Heidegger’, é significante enquanto essência daquilo que não contém nada.
Outras jarras significantes: casca de laranja, de lagosta, de cebola, de
crustáceo, de réptil, de sequóia, de tartaruga, de caracol, de ovo, de pão. A
jarra de Heidegger – casca de vidro – é um objeto que circunda o Vazio e tenta
aclarar a existência deste Vazio no centro do real. Quanto mais o objeto – a
Jarra – é presentificado, mais ele nos abre esta dimensão na qual a ilusão se
destroça e aspira a outra Coisa – menos a letra do que o espírito do escritor”.
A Coisa é babel, bárbara, balbuciante. A Coisa existe mesmo quando não há. As
palavras sopraram antes da Coisa e cada sopro delas é um ramo de sutis idílios.
A palavra neve: sônica, nívea.
Fritz henle, 1975
Ler alguns
poemas
de Fernando José Karl
publicados
na Germina Literatura.
http://www.germinaliteratura.com.br/fernando_jose_karl.htm
Henri Cartier-Bresson (1908-2004)
você é dente de sabre
eu não
eu sou abre-te sésamo
o meu pecado mora ao lado
o meu pecado é passar a língua
ali onde plantas e peixes sabem mais que santos
passar a língua na tua pequena chuva
eu não
eu sou abre-te sésamo
o meu pecado mora ao lado
o meu pecado é passar a língua
ali onde plantas e peixes sabem mais que santos
passar a língua na tua pequena chuva
segunda-feira, 28 de outubro de 2013
Franciszek Starowieyski, sem data
Walter
Benjamin, pela primeira vez sozinho no soturno casarão de seus
antepassados, não pode abandonar a barcaça ao vento nem esconder esse
corpo de mulher que furou à faca, nem urinar atrás da canoa, junto à
âncora de ferro, nem se esconder do rumor da vida alheia, mas pode olhar
a vida de frente e, ao se aproximar da vida, ela se transmuta em chuvas
nas tábuas da varanda do soturno casarão onde, nesse exato momento,
Walter Benjamin escreve suas Memórias de Leipzig.
Do
outro lado da ilha de Pedra, bem próximo do filósofo alemão, eu moro
numa pequena Casa de vidro; para Walter Benjamin, a suprema liberdade
era viver numa Casa de vidro. Certa vez grafou no caderno: “Silêncio,
quero passar onde ninguém passou, silêncio”.
O
corcunda só se corrige na cova, não cansam de dizer os escolásticos.
Eu, que moro numa pequena Casa de vidro, ouso vociferar: Ao inferno os
pensadores de sistemas lógicos! Não só se pavoneiam de ter feito
qualquer coisa, como também enlouquecem ao tentar explicar o vento, e se
incluem na idiotia universal quando insinuam que o céu foi criado por
eles.
Poderia
citar, aqui, o culto Voltaire, que escreveu: “Os homens não conseguem
fazer um verme, mas criam deuses às dúzias”. Claro que Voltaire pode
nunca ter dito isso e eu, vil, atribuí a ele a frase pronunciada. Mas
então eu seria mais arguto que Voltaire, posto que o dito é excelente.
Horas
depois, ainda na pequena Casa de vidro, tive um pensamento selvagem: o
de passar a língua na pele salgada das meninas virgens --- na pele da
nuca, na clavícula, nos quadris assustados, na sombra espessa do púbis.
Eu
sempre acreditei que eu próprio incitara Walter Benjamin a furar aquele
corpo de mulher com a faca, para o fim de aniquilá-la mais rápido, e
capturar o céu que aquele corpo esguio guardava num relicário qualquer
entre as vértebras, se é que realmente algum dia houve céu, corpo de
mulher, vértebras, mas a Casa de vidro existiu desde a primeira
respiração.
No
fim de uma semana, fui ao soturno casarão de Walter Benjamin. Percebi
de imediato que ele não havia conseguido abandonar a barcaça ao vento
nem esconder o corpo de mulher que furou à faca, mas ainda urinava atrás
da canoa, junto à âncora de ferro, e o rumor da vida alheia ele o tinha
sempre que lavava a xícara ou quando abria a geladeira em busca do
alface.
Walter
Benjamin não deu por minha presença. Eu retornei à Casa de vidro,
esqueci um disco na vitrola, fiz café e escrevi até que a chuva lavasse
os dejetos brancos das gaivotas no transparente telhado.Clare Strand, sem data
Tudo isso acontece em
Villa da Concha – esse lugar no mundo perto do Atlântico. K. recolhe das linhas
de água e sal o marulho e o amargo da espuma que espicaçam o interior de sua
pálpebra, porque sabe que falta dizer a língua antiga com o sopro natural dos
ventos. Começa a considerar, como parte do ritual, esse tempo articulado com
molas de relojoaria --- a hora --- e bebe no fólio o ditame bíblico: “Pois
serão todos salgados com fogo. O sal é bom. Mas se o sal se tornar insípido,
como salgá-lo? Tende sal em vós mesmos e vivei em paz uns com os outros”. Águas
do céu deixam mais pesadas as oliveiras à sombra de oliveiras. No casarão,
exposto às chuvas, K. aprende que a língua das nuvens é a dos ventos e não a
língua curial da fealdade. As nuvens arrastam sombras por cima dos vastos
telhados do casarão. “Passar”, diz K. “da palavra tosca à palavra clara é
sereno purificar-se com água de Alladin, que não deixa no lençol mais do que
esta marca simples”. No casarão colonial a voz do orago K.: aragem nas
trepadeiras da cisterna.
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