segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011


Pense diferente.

Mordillo


Fritz Henle, 1943


Eu, a protetora da palavra de Oxum, súbito adivinho que a frase-brisa virá: sete ervas, sete águas. Oro o conjuro do templo de pedra pura, molho na retina a imagem inconclusa de um cacto sem saída, mas aguado na retina. Angorá nos envolve: imagem-angorá traduzida para objeto. Nos olhos do angorá a luz vazando para o íntimo silêncio.

O paraíso é uma gravura chinesa cercada de peixes miúdos, transparentes. Contra as nuvens oníricas, imortais eruditos do folclore chinês dão as boas-vindas a um recém-chegado ao domínio celeste: este solo de oboé do século II.

O silêncio nunca dorme.

Sôin, à sombra do Monte Yoshino, observa e ah! o gafanhoto pula – aroma fosforescente cintila um instante. Tão compenetrado Sôin, não faz outra coisa durante o dia.

Neve em Kyoto: o pinheiro vergado de nuvens. O grou, em seu galho, avista o ombro de Bashô. Ombro vira galho. Neva na neve: Bashô vergado de neve. A neve, sua brancura, cai no grou e no ombro de Bashô.

No quintal de uma casa japonesa, Onitsura se esforça para encontrar a verdade. Dez anos procurou as nuvens que se molham no fundo do rio, antes que as trutas saltem. Quando desistiu, Onitsura foi ao horto e ali se iluminou ao veras folhas de bambu: peso do sol as inclinava às águas do chão. Noturno para a quietude do pássaro pisando lago seco próximo de folhas. Noite: cabelos molham a luz suspensa no lago.

Buson escutou na Casa de Chá do Luar de Agosto, que somente as obras sopradas pelo espírito são boas. Com shi-i (visão própria), Buson aprendeu que na maré vazante águas flutuam conchas sem medo.

Com o leque branco, Hokushi abana carpas no lago abafado. Alma de Hokushi: o leque branco.

E se houver jardim de sopros no oco da estrela alfa de touro? Se pequeno mosteiro com pomar houver na constelação boreal de Cassiopéia? E se nada disso houver, que Houyhnhnms saiba imaginá-los.

A imagem é a respiração daquele que é o Estranhíssimo.

A jarra de Heidegger vista da barca Nautikkon: obra clara psicografada pelo que na água tem sede. A jarra dormindo, raro espécime, no teu pulmão. Porém tão de longe vinha a luz pelos varais, que eu só podia segredar: o oco da jarra não se faz, o oco da jarra acontece.

Oco da jarra: a existência do Vazio no centro do real.

Res, 2006



Pense diferente.

Cartum: Boris Yefimov/Texto: Fernando José Karl



Hitler conversando com o próprio Hitler numa esquina de Berlim:
– Não fique de mau-humor, mein Führer; num dia de chuva assim, não vai aparecer ninguém pra gente cortar a cabeça.

Capa de livro


Kevin Carter, 1994



Há cada 3 segundos
morre
uma
criança
no
mundo.

Pollock (1912-1956)


SOPRO DE CHUVA

Essa água árida fez do vento
o limiar em que nasci: oh quem sonhara,
que entre augúrios tão lodosos se cantara
uma aragem limpa, um oxigênio no tímpano.

Sopro, que vence o vazio escuro, vívido sopro,
arraigado ao gozo de Oxum, logo render-me
à pele cisne na cama de chuva.
Que nunca me foi suficiente, apenas,

a pele cisne na cama aquosa
– antes eu quis, por mais que a desejasse nua –
que nela raiasse húmus de astro,

e assim nua, ela de rastro pelas pedras,
dá ocasião a que eu pronuncie
a leve deusa do ar ou sopro de chuva.

Por onde andará?


Mário Quintana (1906-1994).

Capa de revista



Não custa nada acreditar



Os peixes, que vislumbras no círculo acima, eu os oferendo a ti que está lendo esta linha de frase. No budismo os peixes simbolizam felicidade, pois eles nadam livremente na água.
Clic by Furnaius Rufus.

Gretchen Kelly


Não há século novo
nem luz recente:
apenas um cavalo azul
e uma madrugada.

Federico García Lorca



Cara amiga,
eu acredito muito no poder onírico: eu penso que devemos acordar do estado de vigília (onde o mundo externo vigora). No estado onírico podemos voar com uma árvore perfumada nas mãos; ao acordar vemos aquela árvore no quintal, só que não estamos mais voando nem a árvore é perfumada; isto é o que torna as coisas, de certa maneira, chatas ou desesperadamente enfadonhas. Por isto devemos despertar, não do sonho, mas do estado de vigília (onde o mundo externo vigora). Devemos aprender a retomar a potência do onírico; isto já falava o Nietzsche em sua teoria filosófica do Eterno Retorno.

Contudo há um outro estado, anterior à vigília, que se chama o Deus ou Algo: eu creio firmemente que o Deus ou Algo é quando a luz que temos (ou consciência) ilumina, alumbra, aclara a escuridão. A luz não apodrece. A luz não pensa. A luz, em latim dies: daí vem a palavra dia e a palavra Deus; Deus que é luz, não deste mundo, nem do outro.

Freud foi um divisor de águas no século 20, porque ele descobriu que, no tal do Inconsciente ou Deus ou Amor, só há o vocábulo sim.

O não vem do ego, do que há de mais podre em nós, do tirano que há em nós e que diz que a potência da vigília (o mundo externo) é mais eficaz que a potência onírica. O ego é aquele que diz, todos os dias, que um poema não vale nada; que um passo de dança não vale nada; que uma escultura do Aleijadinho não vale nada; que uma linha de Paul Klee não vale nada; que uma suíte para violoncelo de Johann Sebastian Bach não vale nada.

Por isto devemos esvaziar o ego.O único poder do ego é reconhecer que não tem poder algum: e isto é reverência, humildade, ou deixar que as coisas fluam. Paul Valèry sugeriu: "Devemos ajudar a Hidra a esvaziar seu nevoeiro".

Numa sala, se alguém disser que há um cavalo azul esvoaçando, sabemos que só as crianças o verão (quiçá alguns velhos). Ninguém entra no Reino se não se tornar criança (não no sentido de tamanho ou idade), mas criança no sentido de se abismar no lúdico, no abismo livre das águas e ver as coisas com olhos novos e retinas enxaguadas pela chuva.

E se, no estado de vigília, praticamos o estado onírico, aí somos artistas e, quanto mais artistas, mais conscientes. Outro dia eu imaginei que um leão de fogo passava próximo de minha xícara de chá e, nela, esquecia sua sombra vacilante. Eu não via o leão de fogo, apenas sua sombra na xícara de porcelana branca. Claro: nem o leão de fogo nem a xícara de chá nem a sombra existiam no estado de vigília; eles existiam, somente, no estado onírico. Quando me refiro ao estado onírico, falo também da glândula pineal, cuja função em nosso cérebro é ver; a glândula pineal é o nosso terceiro olho – nosso olho védico – o Olho do Deus ou do Algo: Aquele que tudo sabe e de quem nada sabemos, porque conhecer o Deus ou Algo é conhecer-nos. Através da glândula pineal podemos ver com os olhos fechados tudo o que há no mundo vasto mundo; e, assim de olhos fechados, recordar do mar, do vento, das barcas; rememorar a nossa origem primordial e nossas outras origens que tais.

O amor é um sim primordial; é fluido integrativo; o Deus é sim, nunca não; a não ser que este não seja para o ressentimento; a tristeza, a mentira; a violência; o desamor.

Devemos despertar do estado de vigília, não do estado onírico. No estado onírico podemos ser tudo, a cada milésimo de segundo. No estado de vigília vivemos sob o tacão da selvageria, humilhados pelo grilhão da mesmice, imersos em baboseiras e cotidianos aviltantes. No estado onírico eu posso fazer comigo e com quem amo o que a primavera faz com as cerejeiras; posso, igualmente, lamber o sal de todo o corpo daquele Ser que adoro e ciciar em seu tímpano a ondulação dos capinzais do Ceilão. Ver as coisas externas com a potência do estado onírico, eis a arte e a condição humana. No estado onírico curamos chagas com apenas passar a nossa língua de bálsamo nelas. Precisamos cuidar das coisas do Espírito (as coisas do estado onírico) e o resto nos será dado de acréscimo. No estado de vigília ficamos na cama dos hospitais. No estado onírico somos pássaros; no estado de vigília somos deputados, gerentes de banco, burocratas da pior espécie. No estado onírico somos um improviso só, algo novo, jazz do coração

Por isto viemos à Vida: para reverenciar o Deus que há em nós; o Deus paradisíaco enamorado pelas obras do tempo: um cabelo, um sorriso, um cálice de vinho; um barco que singra em torno da ilha.

Eu creio em poucas coisas, minha amiga; eu apenas creio que o Deus precisa de nosso pobre coração para existir. Devemos ser reverentes à potência do estado onírico e despertar as forças oníricas latentes. Por outro lado, devemos despertar do estado de vigília, enriquecendo a vigília com leões de fogo, deixando-a fluir musical.

Não pensamos pensamentos: pensamos frases.


Somos deuses quando nos abandonamos ao mistério.

Abraço
do

Fernando José Karl


Cartier-Bresson (1908-2004)


pedi água para beber

à tua bola de cristal
à tua pele pedi
que respingasse
na minha pele que lavo
absorto
para sempre absorto
nos mil dias de orvalho
que guardas entre as coxas

Sem palavras


Henri Cartier-Bresson (1908-2004)


você é dente de sabre

eu não,
eu sou abre-te sésamo
o meu pecado mora ao lado
o meu pecado é passar a língua
ali onde plantas e peixes
sabem mais que santos:
ali contemplo uma pequena chuva

Cartaz de filme


Caroline Hyman, 2006


Se a alma é palavra, é pela palavra que ela jamais se encontrará. A alma, por pura proteção, só sairá de onde está quando ela pressentir que a palavra se coroou de antiquíssimas constelações ao vento.

A palavra não é uma coisa morta e nem é palavra o que lemos no dicionário. Muito pelo contrário, a palavra é vis activa: algo pra lá de vivo. A palavra céu, se pronunciada por Algo ou Deus, é um céu; a palavra água é água.

A palavra a que me refiro não é a palavra em estado de dicionário; a palavra a que me refiro, com reverência, é aquela palavra anterior ao mundo; é a palavra que o primeiro Homem (Deus ou Algo) pronunciou para criar o mundo.

Se pronunciarmos céu por nós mesmos, o céu morre; contudo, se pronunciarmos céu por amor ao Algo, ou porque escutamos a palavra de Algo, é bem verdade que um céu acaba de nascer em nós.

A palavra purifica, clareia, inaugura um mundo novo nisto que convencionaram chamar de "alma". A palavra é a casa da alma. A palavra da alma só é desprezada porque ela tem uma pequena aparência.

Quem sabe, depois de mortos, apenas nos reste criar o paraíso com as palavras: aqui a torrente de uma árvore; ali a barca de um vento; lá um adágio perfuma as veias.

O poeta é aquele que pressente isto de maneira profunda: e não quer mais o mundo, mas aquele outro mundo onde pode escutar a palavra e, surpresa, a palavra luz é uma luz mesmo.

Não custa nada acreditar




Contam os místicos que traz sorte
encontrar um trevo de quatro folhas.

Orlando Pedroso


Marilyn Monroe (1926-1962)

Clic by Tom Kelley.

Sem palavras



Neal White

Sideshows

1970

Clare Strand, sem data


Piscar do espírito:

o paraíso

no sonho

te esquece entre águas e conchas

e, súdito,

ao acordar

te respira

Em busca do tempo perdido



Henri Cartier-Bresson

Aquila degli Abruzzi


1952

Em busca do tempo perdido


Hill & Adamson

John Henning, sculptor, as Edie Ochiltree
.

1845