quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

George Seeley, 1900



A BANHISTA

A pálpebra da banhista
encostou na pele do jarro,
porque fazia 40 graus à sombra do cipreste.

O real, o um do jarro,
é antecedido pela palavra jarro,
pelo que em Deus já é jarro,
mesmo sem jarro ser ainda.

Enquanto jarro-coisa, o jarro é irreal,
e a pálpebra da banhista
continua encostada na pele do jarro.

Agora, para que respire,
o inexistente jarro-coisa
converte-se no uso do jarro-palavra,
onde a banhista encosta a pálpebra.

Michael Davis, sem data



Eu te tratei como príncipe, meu Deus, mas foste mau com a espécie. Dizimaste inumeráveis chuvas que estavam suspensas aos quatro ventos. Entre os teus longos dedos brancos, a negra ardósia de nosso túmulo. Como não te comoveste com tantas ondas tenras de constelações sumindo? Se em teu coração celeste houvesse apenas a sede de alcançar a estrela, se evaporaria do jardim a morte. Entre barqueiros acordaríamos leves --- e príncipe que és, com olhos de céu --- ressuscitarias cada

grão

de


chuva

Edward Dimsdale, sem data



CASA DE MENANDRO

Logo se espalha um suave vento e as cortinas começam a dançar. A serenidade de um verso latino. Na casa de Menandro angst morre nas pedras. Eu escuto orvalho no olho do peixe que paira o aquário da casa antiga, casa antiga que os vendavais circundam. Uma ramagem de sutis idílios faz sombra na parede branca da casa de Menandro. O sol marinho dá nas calhas e nas venezianas. Menandro desce os degraus de pedras soltas, nos galhos do salgueiro vai deixando
blusa
calça
sapatos
chapéu
cachimbo



Angst: medo, em alemão.

Aaron Siskind, 1944




Aqui, na cervejaria Bürgerbräukeller, entabulo conversa com o garçom, que me traz logo uma cerveja e inicio a primeira leitura do Testamento para El Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis – que sugere o total isolamento para que se possa desvelar o mais profundo do ser humano. O mesmo Nikos disse em algum lugar: – As únicas coisas que importam na vida: idéias, frutas, mulheres.

O banheiro da cervejaria Bürgerbräukeller – arruinado, sujo. Almas acossadas em cada recanto sombrio. O dono do bar não é o Esteves, aqui não é a Tabacaria, aquele que me fita da mesa ao fundo não é o Fernando Pessoa. Se não é o Fernando, quem é? É Jorge Luis Borges e solicita que eu leia um texto de sua autoria intitulado “A escrita do Deus”: “Perdi o número dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui jovem e podia caminhar por esta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura de minha morte, o fim que me destinam os deuses. Com a profunda faca de pedernal abri o peito das vítimas e agora não poderia, sem magia, levantar-me do pó”.

Que estou na treva, estou. Sem magia, não me levanto jamais do pó nem alcanço o copo de água. Sem magia eu não ressuscito nem pra beijar a boca da Ingrid, aquela safada. Minha alma – agora sei – foi vista pela última vez na página 72 de “O livro perdido de Tácito”. Acontece que, numa faxina aqui em casa, perdi “O livro perdido de Tácito” e só Deus sabe quando vou encontrá-lo de novo.

Por enquanto minha alma continua perdida e eu aproveito para seguir religiosamente o conselho do espanhol Pablo Picasso para uma vida perfeita: De manhã, missa; de tarde, touradas; à noite, bordel.

Escrevo, aqui na cervejaria Bürgerbräukeller, num guardanapo: “Deus morreu nos meus braços naquele sábado em que eu e Júlia nos amávamos no Calvário. A língua vai para onde quer, o espírito sopra onde quer, o Olho por onde espio o vento é o Olho por onde o vento me espia. Meus olhos vão ver o paraíso, sim, mas serão olhos apodrecidos. ”

Milenko Kosanovic


Clare Strand, sem data



HOSOMI

Piscar do espírito:

o paraíso

no sonho

te esquece entre águas e conchas

e, súdito,

ao acordar

te respira

Max Thorek, 1930




O venerável superior Hans Daff, da abadia de Wassal, no balneário de Ó, põe os óculos redondos e, fingindo que folheia com unção o vago registro no caderno católico, não deixa de observar que, ali na sacristia, a nuca da menina é perfumada.

O venerável convida a menina para que sente em seu colo. Quinze anos tem Laurinha; o venerável espera que saiam todos e a mão com o grosso anel de ouro enfia-se no musgo entre as coxas da menina que ainda não sabe, que ainda não pode saber.

Os lábios molhados da menina, a nuca perfumada, o repique dos sinos. Alguns padres desfiam o rosário no átrio.

Aqui é o balneário de Ó envolto em neblina, onde atracam as barcas que descem o rio. Folhas do tamarindo caem, num abandono previsível, e, se erguermos um pouco os olhos, deparamos também com aquele céo antiqüíssimo e monótono. Contudo, o que se percebe mesmo é que o vento e os homens, as pedras e as mulheres só cuidam de si, nunca desconfiam que, nesse minuto, na abadia de Wassal, o venerável Hans força a menina a ficar de quatro e a beijar o crucifixo.
Pedra escrita




NOÇÕES DE GRAMÁTICA
(Origo et fons)

Essa frase tem contém dois verbos.
Essa frase tem repolho seis palavras.
Essa não é uma completa.
Essa também.

Em busca do tempo perdido



Erdös Sandor

Three children dressed as Pierrot.
Budapest/Hungary.

1900