segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Beth Moon, sem data




SOB O GUARDA-SOL NUM DIA FRIO

Ante o mar azulado, em sua cadeira de praia,
ela dormindo

sonha
com o príncipe da neblina

que se aproxima
de sua orelha

para esquecer ali
a música verdejante

Édouard Boubat, sem data




Essa matéria fina de toda a certeza– música do pensamento –
é a palavra,
e com ela pronunciamos o indizível de sermos céu,
pêssego,
caligrafia.

Com essa fina matéria de toda certeza
toco a fímbria do ar,
me despedaço sete vezes,
sou menos que o vento,
oração numa varanda,
sou o que eu desejo.

E o meu desejo,
se o pronuncio com essa matéria fina de toda a certeza
– a palavra –
o meu desejo é que acordemos num quarto novo,
alguns cacos pelo tapete,
uma estrela fervente em cada mão.

Klavdij Sluban, sem data



A CASA DE VIDRO


Pela primeira vez sozinho no soturno casarão de meus antepassados, não posso abandonar essa barcaça ao vento nem esconder esse corpo que furei a faca nem mijar atrás da canoa nem me esconder do rumor da vida alheia, mas posso olhar a vida de frente e, ao meu olhar, os porcos fedorentos se transmutam em chuvas, chuvas de pérolas no assoalho do soturno casarão de meus antepassados.

Do outro lado da ilha de Pedra eu moro numa pequena casa de vidro; para Walter Benjamin, a suprema liberdade era viver numa casa de vidro. Silêncio, quero passar onde ninguém passou, silêncio.

O corcunda só se corrige na cova.

Derain



A TEMPESTADE


A tempestade lá fora aviva tudo o que se move: árvores vergadas ao chão.

Schopenhauer ancora a barca Nautikon a um tronco de carvalho e retorna ao Hotel Sunset Boulevard, senta no parapeito do terraço que dá para o mar grosso e franze a testa. O médico lhe deu a notícia dolorosa: só dois dias de vida. Lythia, abalada com o câncer do marido, deita sob o guarda-sol. Ela, após alguns minutos, lembra a Schopenhauer que não somos nada, nunca fomos nada, e que, apesar disto, podemos guardar na memória todos os jarros de luz que o sol esqueceu à porta dos amantes.

Schopenhauer retorna à varanda desse hotel, à visão do mar. Esqueceu o costume de fazer discursos e, afastando com o gesto a mosca, volta a encarar sem esforço as ondas de salgada branca espuma, as ondas que se destroçam na pedra feito louças. Schopenhauer medita e decide: vai dar um passeio pelo bosque vazio nos arredores da Pacific Coast Highway e assassinar, com soco no ouvido, uma freira carmelita.

No meio do bosque vazio, nessa pacata Vila de Torre Escura, Schopenhauer encontra a freira. Quando ia desferir o soco, ela reage:
"Agora não; você está muito cansado", e crava um peixe nos ombros de Schopenhauer; um peixe que se debate de forma violenta.
"Você conhece este peixe?", pergunta a carmelita.

Schopenhauer responde que não. O arpão de um raio acerta a nuca de Schopenhauer, que não morre, antes mistura vocábulos próprios e alheios, paisagens de toda sorte, a tal ponto que ele pergunta a si mesmo como é que um homem, que ia morrer dali a dois dias, podia tratar tão friamente uma freira carmelita, a ponto de querer assassiná-la com soco no ouvido?

Sim, Schopenhauer retorna ao Hotel e encontra Lythia que, ainda sob o guarda-sol, folheia o Livro dos Mortos — o Bardo Todol — que diz que, alguns dias após a morte, tudo em nós vira vento e a primeira coisa que vemos é um cavalo, também de vento, e Lythia percebe que o Schopenhauer que se aproxima não conseguiu matar a freira carmelita e ainda trouxe um peixe cravado nos ombros, um peixe que não pára de se mexer.

Schopenhauer pergunta:
"Quanto tempo ficaste ao sol hoje, Lythia?"
Lythia responde, espreguiçando-se:
"Há milênios, milênios".

Uma sombra desce ao rosto de Schopenhauer sempre que recorda o prognóstico do médico que lhe disse:
"Só dois dias de vida, meu senhor, só dois dias".

Auguste Lesouëf, 1912




AS JARRAS DE ELISA

Elisa nunca fica de costas para as jarras cheias d’água na sala e, à mesa, talheres, prato, copo e o salmão grelhado. Ao canto da longa mesa, espiando o céu pela vidraça, Elisa escuta o silêncio, atenta ao que nas coisas está sempre escutando! Ainda lembro dela arrancar das jarras o vidro, contudo, sem vidro, não há jarras.

Ela paira nesta sala de jantar e lê as Breves memórias de Alexandros Apolonios. As orações que Elisa faz não purificam as árvores lá fora. O amor é o menino em chamas no tombadilho, é a pata esmagada do cão por um trem, sobretudo, o amor conduz à elegância e faz com que a seriedade fúnebre suma na curva da açucena ou toque um noturno em sua própria coluna vertebral.

Nessa manhã antiga, à sombra de árvores seculares, e também à sombra das jeunes filles proustianas, eu, definitivamente, decidi que não posso andar por aí com as jarras cheias d’água de Elisa. Mas posso consentir que alguém queira escutar o silêncio que Elisa escuta. Se aqui eu estivesse com as jarras, uma em cada ombro, o máximo cuidado teria para que não caíssem, as jarras, nas pedras. Sejamos reverentes à verdade sóbria e pura: nenhum de nós nunca chegou a existir para que houvesse alguma possibilidade de paraíso após o último suspiro.

Tão absolutas as jarras cheias d’água de Elisa. Mas tão maciçamente seca e pétrea a caveira. Tão jarras d’água as jarras de Elisa. Só com elas Elisa pode ver a estrela.
Imersa no vento, onde respira, Elisa aprende que a vida é vã como a sombra que passa, e que as jarras são jarras, mais que sombras, porque jarras fazem sombra e nunca sombras fazem jarras.

Cartier-Bresson, sem data




LES BAINS DE CARACALLA

Sonhei tanto, sonhei tanto,
que não sou mais daqui.

León-Paul Fargue



Às águas da piscina de Caracalla levo a alma,
--- na piscina nadam cinco Danaides ---,
levo a sede às cacimbas.
Com pureza entro na barca do pensamento;

agora sei que as Danaides
é que arejam a língua da piscina.
Há dentro de mim uma água que não existe.
Há uma fonte além do vento e da morte:

nela água é humilde.
A cisterna que a contém recende
a um acorde de pólen.

A música é haste de gramínea
entre os cabelos das Danaides.
Esqueci minha língua de piscina

no tímpano de uma delas --- a com o leque.
Ver 7 obras de arte
da Galeria Saatchi

Astrid M. G. Rubie


Nurieh Mozaffari


Helena Hamilton


Luann Ostergaard


Vedrana Devic


Giuseppe Taras


Isabel Alfarrobinha


Em busca do tempo perdido




Henry Peach Robinson

Temps orageux
[Photo-Club de Paris / 1894, Pl. LIV]

1894

Em busca do tempo perdido




A.R. Dresser (Bexley Heath, Kent)

Nettoyage
[Photo-Club de Paris / 1894, Pl. LI]

1894

Em busca do tempo perdido




W. Dawes: (Woolwich)

En route pour le Marché
[Photo-Club de Paris / 1894, Pl. XLVII]

1894

Em busca do tempo perdido




Georges Robard

Lépart matinal de Régates
[Photo-Club de Paris / 1894, Pl. XLVI]

1894

Em busca do tempo perdido




Ralph Winwood Robinson

Brouillard sur la Tamise
[Photo-Club de Paris/1894, Pl. XXXVI]

1894

Em busca do tempo perdido



Albert-Edouard Drains

Etude de Femme
[Photo-Club de Paris/1894, Pl. XXXI]

1894

Em busca do tempo perdido




Edouard Hannon

Matinée d'automne
[Photo-Club de Paris/1894, Pl. XXVI]

1894

Em busca do tempo perdido




Michel Kotchoubey (Bobrovitz)

Bords du Soupoi
[Photo-Club de Paris/1894, Pl. XXII]

1894

Em busca do tempo perdido




Emilie Clarkson

Miroir de l'Eau
[Photo-Club de Paris/1894, Pl. XVIII]

1894

Em busca do tempo perdido




Fred Boissonnas

Les Troglodytes
[Photo-Club de Paris/1894, Pl. XVI]

1894

Capa de livro




Brassaï

Book cover for "Brassaï" by Ludvik Soucek
(Prague: S.N.K.L.U., 1962)

1962

Capa de livro




Robert Frank

Cover of "Die Amerikaner" (Zurich: Buchclub Ex Libris)

1986

Capa de livro




Jean Chaffanjon

Book cover for "Superb Orénoque" by Jules Verne
(Collection Hetzel, 1898)

1898