sábado, 13 de novembro de 2010


Ana Castro de Jesus Leão Beeck:
hoje estaria com 99 anos se não tivesse morrido
no dia 3 de novembro de 2009 às 10:30
en punto de la noche.



A RESPIRAÇÃO DOS VELHOS



Cobrir-se com o plânctum da alegria, antes que o langor da preguiça nos olvide entre ceras. O nada da brisa, a perfeição da leveza nesse terreno coberto de bambus. Quantas noites mansas escuto grafadas em tábuas de caligrafia chinesa? Construídas com ossadas de velhos sábios, as tábuas guardam a respiração deles. A caligrafia salva do esquecimento: soluços, amor, relva, idioma de velhos sábios que reverenciam o silêncio nesse terreno coberto de bambus.


De seu neto,
Fernando José Karl

Ruud van Empel, sem data



Única fotografia conhecida
do Deus

Morris Rosenfeld, 1930



SOPRO DE CHUVA

Essa água árida fez do vento
o limiar em que nasci: oh quem sonhara,
que entre augúrios tão lodosos se cantara
uma aragem limpa, um oxigênio no tímpano.

Sopro, que vence o vazio escuro, vívido sopro,
arraigado ao gozo de Oxum, logo render-me
à pele cisne na cama de chuva.
Que nunca me foi suficiente, apenas,

a pele cisne na cama aquosa
--- antes eu quis, por mais que a desejasse nua ---
que nela raiasse húmus de astro,

e assim nua, ela de rastro pelas pedras,
dá ocasião a que eu pronuncie
a leve deusa do ar ou sopro de chuva.


Ver as mais estranhas criaturas
neste bestiário inacreditável.
Prepare-se, depois de ver
estes animais do outro mundo,
você nunca mais será o mesmo.

Les Krims, sem data


Isto não é maconha, mas você pode fumar.

Cindy Sherman, sem data



Não foi Deus quem me deu a notícia, mas um outro, a recomendação sábia de que a palavra é o mais elevado poder.

Não é de hoje nem de ontem, mas perdurando sempre e sempre surge aquela recomendação sábia, e ninguém jamais conseguiu ver de onde ela surgiu para brilhar.




Palavras de Antígona, de Sófocles

Isto não é maconha, mas você pode fumar.

Gustave Le Gray, 1855

A PISCINA DA MANSÃO DOS HOOPERS

A janela do quarto onde durmo deita para a piscina da mansão dos Hoopers; deita a janela, também, para a imensa manhã, onde o vento não se ouve, passa pelas folhas das vinhas, talvez nem se perceba o vento e Homero, que não existe mais, quem sabe sinta essa aragem mais que nós. Sentado à janela, contemplo essa coisa nenhuma que é o quintal com laranjas lá fora.

Quantas vezes julguei ver a luz lá no beco e, nas ruas de pedra com sobrados altos, o que apenas vislumbro são virgens em flor à sombra de cellos de Brahms e, diante do copo de água, eu passo as horas a cismar. Acordo e pulo a janela do quarto, para observar a prosa serena dessa praia Brava – o céu definitivo sempre esteve aqui, entre as coisas naturais – e ali, no areal, finco o guarda-sol, medito que as cordas dos violoncelos em vibração cumprem o seu dever primitivo: soam!

O meu corpo adormece nessa praia, enquanto as folhas da palmeira pairam sombras no mar de gelo. Afasto-me da essência da sombra e, nessa cama improvisada sob o guarda-sol, penso que o imaterial rege o material e reconstrói o osso de Trakl e o jardim que Wittgenstein cuidou no mosteiro da Basiléia. Rente ao mar e sob o guarda-sol, desconsolado e anônimo, escrevo palavras para salvar o alfabeto das conchas; lavo-me em ar de tumba para tocar um inferno suspenso no pensamento. A chuva não perturba as linhas das marisqueiras que ondulam na praia Brava.

Retorno ao quarto que deita para a piscina da mansão dos Hoopers. O céu enfia-se pelos ouvidos, pelas narinas, pela boca e, estirado de novo aqui na cama do meu quarto absurdo, escuto a idéia de que sou pó e ao pó voltarei. Esvaziado de toda alegria, sou forçado a um contato com a brisa que afunda na fronte dos que andam à beira-mar. Escuto cismas da serpente corcunda que insiste cravar suas garras em minhas brânquias. Escuto a chuva que lava os telhados, mas agora, deitado na cama, o que é isso que esboça no inciput fervente um cacto difícil de definir?

A idéia de uma obrigação qualquer me desconcerta: ir ao banheiro escovar os dentes; tratar junto do açougueiro uma coisa que é pedir a carne para o bife; esperar na estação de trem a essa moça tão depressiva, que maquia defuntos para apaziguar os pensamentos de um dia. Às vezes durmo mal e sonho que bato no prato de lentilhas com o pano cheio d'água. É desde a mesma véspera do nada que me preocupo com as pedras que ardem, e o caso real de haver um mar pensativo, quando se dá, é insignificante, mas descerra a porta maciça, e a solidão repete-se, e eu desaprendo a sofrer.

Os meus hábitos são do silêncio, nunca dos deuses nem de Homero, que escutou que um mar é água sobre água que se move. A janela do quarto onde durmo continua deitada para a piscina aberta da mansão dos Hoopers, e a visibilidade de tudo que passa seca minha retina. E, agora, aqui, estou preso à mansão dos Hoopers, principalmente preso a esta mulher que mergulha sua nudez na piscina e verifica se a janela aberta é a do meu quarto.

Cy DeCosse, 1999


Isto não é maconha mas você pode fumar.

Kasimir Malevich (1875-1936)

"A VIDA, QUANDO OLHADA DE FRENTE, DÁ
VONTADE DE CHORAR".

Nelson Rodrigues


600 milhões de pessoas no mundo inteiro vivem em favelas nos arredores das grandes cidades.


No mundo, mais de 300.000 crianças, meninos e meninas, são soldados. Muitos deles têm menos de 10 anos.


Mais de um bilhão de pessoas não dispõe de decentes condições de vida.


Numa catástrofe natural, o número de mortos em países em desenvolvimento é 47 vezes

maior do que em países desenvolvidos.


Metade da humanidade vive com menos de 2 dólares por dia.


1 em cada 5 crianças não vai à escola. Um terço da superfície terrestre sofre de desertificação.

A indústria alimentar gasta 40 mil milhões de dólares por ano em publicidade.


A água insalubre provoca 5 milhões de morte por ano.


A espessura média da camada do gelo ártico passou de 3,2 m na década de 1960 para 1,8 m na década de 1990.


As emissões de CO2 produzidas pelas atividades humanas são responsáveis por mais de 60% do aumento do efeito estufa.


70% da água doce são usados para irrigar a terra cultivada e 80 países, ou seja, 40% da população mundial, sofrem de grave escassez de água.


A população mundial aumenta mais de um milhão de pessoas por semana.


Por ano 500.000 crianças ficam cegas por falta de vitamina A.


Para fabricar um computador são necessárias 8 a 14 toneladas de matérias primas não recicláveis.


40 milhões de pessoas morrem de fome por ano num mundo que produz 356 quilos de cereais por pessoa.


Um em cada cinco adultos no mundo não sabe ler ou escrever. Desses 90% vivem em países em desenvolvimento e dois terços são mulheres.


A quantidade de petróleo consumida em 6 semanas, metade da qual é usada em transporte, teria durado um ano inteiro em 1950.


2 espécies desaparecem por semana no mundo inteiro.


40% da população mundial não têm eletricidade.


Uma em cada três crianças com menos de cinco anos sofre de subnutrição.


No século passado a população aumentou 3 vezes, o consumo de água no mundo aumentou 6 vezes.


20% das pessoas que vivem nos países mais ricos consomem 60% da produção de energia comercializada no planeta.


90% da população mundial nunca fizeram uma chamada telefônica.


O total de despesa militar no mundo atinge 794 bilhões de dólares e a ajuda pública ao

desenvolvimento totaliza 58 bilhões de dólares.

Matisse (1869-1974)



CASA DA AGOA DO CHAFARIZ

Caída no lajedo da Casa da Agoa do Chafariz, a velha pronuncia a palavra: Qadós. Um aguar de onda marinha umedece o rosto de Hilda Hilst em decúbito dorsal rente à árvore. Envolta em eflúvios de água de colônia, ela agoniza e não há cítara nem pedra que a ressuscite. Com arraia tatuada em suas costas, com um olho tatuado acima de seu púbis, Hilda espanca com chapéu de chuva uma das janelas da Casa da Agoa do chafariz. Hilda Hilst traz hua cabeleira de limos, chêa de caracois, de michilhoens, ou caramujos e, ao peito, a música e um talim de pelles de enguias. Ainda é tão cedo que Hilda Hilst descerra a cortina de cristal e contempla o vento nas ramas. No altar, as lágrimas da deusa Orín são abandonos da chuva num dos degraus de mármore. Ou a deusa borda lágrimas na tempestade porque não voltarás? O marasmo dessa noite, através das cortinas de contas de cristal, olha para a ode que grafito sobre o dorso do peixe persa.


Sem palavras

Anônimo, sem data



As manhãs do Peloponeso não devem ser mais belas que as manhãs da rua do Castanheiro. As coníferas, o rádio alto no sobrado da esquina, uma construção de grade de madeira e, no quintal, aquele enorme vaso, plantas de folhas longas. No corredor do sobrado desembocam quartos cheios de treva e, na sala de leitura, eu visto uma camisa de algodão enquanto espero que passe o enterro da menina Luciana, filha do açougueiro Otto.

Quem a conheceu recorda que sorvia até o fim o cheiro da flor de laranjeira e, nos dias de calor, descansava à sombra da cisterna. Depois pendurava roupas no varal, andava entre árvores. A filha do açougueiro Otto trazia o espírito curioso atento ao cotidiano de louças, vassouras, e nunca compreenderia, por exemplo, a Mecânica dos Fluidos, de Bertrand Russell, ou as frases cortantes de Wittgenstein, em seu Tractatus.

Esta imagem da menina Luciana data de 1952, quando ocorre sua morte com apenas 16 anos.

A última vez que a encontrei, no beco dos Goyas, eu havia puxado um fumo louco junto ao portal da igreja de São Ignácio.

Aquela tarde, nos muquifos de sempre, também sorvi a espuma dourada de algumas cervejas Eisenbahn, e, de vez em quando, olhava para a lâmina que cortaria o virginal pescoço da filha do açougueiro Otto.