sábado, 18 de setembro de 2010

Cartier-Bresson (1908-2004)

QUANTO MAIS PRÓXIMA A LÍNGUA
DA ORIGEM DA CHUVA,
MENOS FEL E GRAMÁTICA


O acaso espreita da folha em branco.

Toda sede do céu é de abismo
e vivace sorvo, touro de mar caço à unha:
oro a Orum, peço que a neve nô
caia
nas árvores vergadas pela névoa.

O pensamento quer matar
a sede na chuva.

Quanto mais perto da música de câmara,
mais a língua venta um acorde que amanhece
esse virgem verso,
esse rosário de buirás,
esse kami
na imensa altura do vento.

Paul Klee (1876-1940)

O PENSAMENTO SELVAGEM

Apenas a emoção,
pressente alguma coisa.


Gregório de Nysse



De enseada extrema,
de seminu confinado entre sagüis,
assim é o barro de Deus.

Um caranguejo,
diamante acossado ou crustáceo de decápode,
braquiúro de pernas terminadas em unhas pontudas.

Caranguejo que não sabe de outro caranguejo.

Assim é o barro de Deus:
enseada extrema,
respiração sumindo entre papoulas.

Man Ray (1890-1976)

Axaxaxas mlö

O título desta narrativa – Axaxaxas mlö – pode, à primeira vista, parecer incoerente e passível de uma correção tipográfica.

Até as mulheres foram banidas da ilha de Axaxaxas mlö, que cultua uma economia de sentimentos, o que a faz parecer fria e calculista ou mesmo uma ilha insuportavelmente tediosa. O certo é que, para Axaxaxas mlö, são deportados ladrões e estupradores.

E, sem dúvida, também aqueles que não praticam a pureza com ferocidade.

Gustave Doré (1832-1883)

Clitemnestra

Eu afogo Agamênon na banheira e reafirmo o preceito cáustico:
– Não chame Agamênom de feliz, até que ele esteja morto. E agora – morto –, Agamênom está feliz?

Claro que, morto, ele não sabe mais da sombra da oliveira ao meio-dia, e nunca mais fala quando quer falar, nem quando querem que fale. Agamênom discursa às paredes de seu túmulo, coça da perna um verme, pensa, se é que um morto pode pensar, que lá fora ninguém é feliz, mesmo vivo.