terça-feira, 27 de outubro de 2009

Pann Annoussis, sem data

SOPRO DE CHUVA

Essa água árida fez do vento
o limiar em que nasci: oh quem sonhara,
que entre augúrios tão lodosos se cantara
uma aragem limpa, um oxigênio no tímpano.

Sopro, que vence o vazio escuro, vívido sopro,
arraigado ao gozo de Oxum, logo render-me
à pele cisne na cama de chuva.
Que nunca me foi suficiente, apenas,

a pele cisne na cama aquosa
– antes eu quis, por mais que a desejasse nua –

que nela raiasse húmus de astro,

e assim nua, ela de rastro pelas pedras,
dá ocasião a que eu pronuncie
a leve deusa do ar ou sopro de chuva.

Kevin Carter, 1994


Há cada 3 segundos morre uma criança no mundo.

Pollock (1912-1956)

A janela do quarto onde durmo deita para a piscina da mansão dos Hoopers; deita a janela, também, para a imensa manhã, onde o vento não se ouve, passa pelas folhas das vinhas, talvez nem se perceba o vento e Homero, que não existe mais, quem sabe sinta essa aragem mais que nós. Sentado à janela, contemplo essa coisa nenhuma que é o quintal com laranjas lá fora.

Quantas vezes julguei ver a luz lá no beco e, nas ruas de pedra com sobrados altos, o que apenas vislumbro são virgens em flor à sombra de cellos de Brahms e, diante do copo de água, eu passo as horas a cismar. Acordo e pulo a janela do quarto, para observar a prosa serena dessa praia Brava — o céu definitivo sempre esteve aqui, entre as coisas naturais — e ali, no areal, finco o guarda-sol, medito que as cordas dos violoncelos em vibração cumprem o seu dever primitivo: soam!

O meu corpo adormece nessa praia, enquanto as folhas da palmeira pairam sombras no mar de gelo. Afasto-me da essência da sombra e, nessa cama improvisada sob o guarda-sol, penso que o imaterial rege o material e reconstrói o osso de Trakl e o jardim que Wittgenstein cuidou no mosteiro da Basiléia. Rente ao mar e sob o guarda-sol, desconsolado e anônimo, escrevo palavras para salvar o alfabeto das conchas; lavo-me em ar de tumba para tocar um inferno suspenso no pensamento. A chuva não perturba as linhas das marisqueiras que ondulam na praia Brava.

Retorno ao quarto que deita para a piscina da mansão dos Hoopers. O céu enfia-se pelos ouvidos, pelas narinas, pela boca e, estirado de novo aqui na cama do meu quarto absurdo, escuto a idéia de que sou pó e ao pó voltarei ou voltarei para os eflúvios da noite. Esvaziado de toda alegria, sou forçado a um contato com a brisa que afunda na fronte dos que andam à beira-mar.

Escuto cismas da serpente corcunda que insiste em cravar suas garras em minhas brânquias. Escuto a chuva que lava os telhados, mas agora, deitado na cama, o que é isso que esboça no inciput fervente um cacto difícil de definir? A idéia de uma obrigação qualquer me desconcerta: ir ao banheiro escovar os dentes; tratar junto do açougueiro uma coisa que é pedir a carne para o bife; esperar na estação de trem essa moça tão depressiva, que maquia defuntos para apaziguar os pensamentos de um dia.

Às vezes durmo mal e sonho que bato no prato de lentilhas com o pano cheio d'água. É desde a mesma véspera do nada que me preocupo com as pedras que ardem, e o caso real de haver um mar pensativo, quando se dá, é insignificante, mas descerra a porta maciça, e a solidão repete-se, e eu desaprendo a sofrer. Os meus hábitos são do silêncio, nunca dos deuses nem de Homero, que escutou que um mar é água sobre água que se move.

A janela do quarto onde durmo continua deitada para a piscina aberta da mansão dos Hoopers, e a visibilidade de tudo que passa seca minha retina. E, agora, aqui, estou preso à mansão dos Hoopers, principalmente preso a esta mulher que mergulha sua nudez na piscina e verifica se a janela aberta é a do meu quarto.

Capa de livro



Cartum: Boris Yefimov/Texto: Fernando José Karl


Hitler conversando com o próprio Hitler numa esquina de Berlim:

– Não fique de mau-humor, mein Führer; num dia de chuva assim não vai aparecer ninguém pra gente cortar a cabeça.




Ver mais vídeos de Saramago

sobre o Deus

http://ontheroadsince72.wordpress.com/2009/08/31/caim-de-jose-saramago/

Quase 20 anos depois de seu discutido livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que foi vetado pelo governo português para competir pelo Prêmio Europeu de Literatura, o Nobel português faz uma irreverente, irônica e mordaz leitura por diversas passagens da Bíblia, mas não teme que voltem a crucificá-lo.

"Alguns talvez o façam - afirma Saramago - mas o espetáculo será menos interessante. O Deus dos cristãos não é esse Jeová. E mais, os católicos não leem o Antigo Testamento. Se os judeus reagirem não me surpreenderei. Já estou habituado."

No entanto, acrescentou: "Mas é difícil para mim compreender como o povo judeu fez do Antigo Testamento seu livro sagrado. Isso é uma enxurrada de absurdos que um homem só seria incapaz de inventar. Foram necessárias gerações e gerações para produzir esse texto".

José Saramago não considera esse romance seu particular e definitivo ajuste de contas com Deus, porque "as contas com Deus não são definitivas, mas sim com os homens que O inventaram", disse. "Deus, o demônio, o bem, o mal, tudo isso está em nossa cabeça, não no céu ou no inferno, que também inventamos. Não nos damos conta de que, tendo inventado Deus, imediatamente nos tornamos Seus escravos", assinalou o autor.

O escritor nega que o fato de ter chegado perto da morte há um ano, quando foi hospitalizado por conta de uma pneumonia, o tenha feito pensar mais em Deus. "Tenho assumido que Deus não existe, portanto não tive de chamá-Lo em uma situação gravíssima na qual me encontrava. Mas se eu o chamasse, e ele aparecesse, que poderia dizer ou pedir a Ele, que prolongasse minha vida?" Saramago diz ainda que "morreremos quando tivermos que morrer. E diz que quem o salvou foram os médicos, Pilar (sua esposa e tradutora) e o excelente coração que tenho, apesar da idade. O resto é literatura, da pior espécie".

Há um ano o escritor surpreendeu seus leitores pela ironia e humor que destilam as páginas de Viagem do Elefante, e agora volta com Caim. Para Saramago é um mistério. "Não foi deliberada nem premeditada, a ironia e o humor que aparecem nas primeiras linhas de ambos os livros. Poderia ter usado uma narrativa solene, mas seria uma estupidez rechaçar o que está sendo me oferecido numa bandeja de prata.

O escritor começou a pensar em Caim há muitos anos, mas começou a escrever o romance em dezembro de 2008, concluindo o texto em menos de quatro meses. "Estava em uma espécie de transe. Nunca havia me sucedido tal coisa, pelo menos com essa intensidade, com essa força", lembra.

Saramago, que uma vez escreveu que "somos contos de contos contando contos, nada" e assim continua. Escreve mais e mais rápido do que nunca (três livros em um ano), talvez a melhor maneira de continuar vivo.

"É verdade. Talvez a analogia perfeita seja a da vela que lança uma chama mais alta no momento em que vai se apagar. De toda maneira, não se preocupem, não penso em me apagar tão rapidamente", conclui.