quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Em busca do tempo perdido



Alinari, 1855

Leaning Tower, Pisa

Mordillo

Hilda Hilst (1930-2004)

Ler o blog de Hilda Hilst

www.oultimosoprodehildahilst.blogspot.com

Fernando Pessoa (1888-1935)

Escutar Fernando Pessoa

na voz de Paulo Autran

http://www.youtube.com/watch?v=6mLyfWAw9Tc&feature=related

Fuchs, Daniel & Geo, sem data

Volto ao ancoradouro de Vila da Pedra, meu caro Franz, para fumar apenas um cigarro. É que eu trabalhei a madrugada inteira nas minhas Confissões orgíacas e agora bateu um certo cansaço. O ar muito seco, muito azul, talvez me serene. Ontem fui à Tabacaria do Esteves, onde também se vende absinto, e avistei a divina Elisa, do outro lado da rua, com pluma branca no chapéu. La lengua del alma es la pluma, deixou escrito Cervantes. Eu só podia ver que ela entrava numa pensão sórdida. E olha que há vinte dias encontrei na minha caixa de Correio a notícia curta de que ela iria se casar. Com quem, meu amigo? Com o conhecido proprietário da Tabacaria, o Esteves, que ainda sorri. Então casou com o Esteves? Quis dizer a ele que sua esposa o estava traindo, mas decidi ficar quieto.


A divina Elisa acaba de sair da pensão sórdida, atravessa a rua em direção à Tabacaria, e, agora sei: ela é, nas horas vagas, prostituta. Unicamente por não poder, com minha costumeira honestidade, contar ao Esteves o que vi, preferi fingir que fumava um Continental e perguntei a ele como era estar casado. O Esteves me respondeu que Elisa é uma espanhola que conhecera em Málaga, numa Semana Santa. O ex-marido dela, pacato consumidor de queijo, sofria de um terrível mal: nasciam-lhe lesmas na língua; lesmas não confiáveis. Ora uma das lesmas caiu no chá de Elisa e isso foi o suficiente para que as núpcias fossem desfeitas. Ela amara o ex-marido na cama de linho, atrás da igreja dos Lavados, o amara à beira do rio, no banheiro da estação de trem, e só por causa das lesmas decidiu vir para cá, à Vila da Pedra, e nos conhecemos ali no ancoradouro onde agora, em estado de óbvia distração, eu contemplo as nuvens.


Compreendo o romance e o motivo, só não entendo porque Elisa trái o Esteves nessa pensão barata. Depois de jogar o charuto no cinzeiro, aquela imagem dela entrando naquele lugar imundo ainda apertava na minha cabeça. Vociferei:

– Mas por quê? Por quê?

– Talvez por tédio.


Recordemos: durante anos Elisa amou enlevadamente aquele homem das lesmas na língua e, há vinte dias, casou com o Esteves. Amou aquele homem porque seus grossos bigodes eram negros, e ama hoje o proprietário da Tabacaria porque ele é ocioso, amável e não possuí lesmas na língua.

Oleg Dou, sem data

Estou lendo, nesse exato instante, um poema de Hildegard von Bingen (1098 a 1179 d.C.), que gostaria de compartilhar com vocês:

Porque a mulher criou a morte,
uma virgem clara a dissolveu;
por isso a bênção suprema
vem na forma feminina,
além de todo criado:
o mesmo Deus se fez homem
na virgem doce e beata.