quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Toni Frissell, 1958

Na única torre do casarão colonial, imitando água fria no búzio, K. desfere à queima-roupa a sentença idílica: “Escutem! Pois, na verdade, uma vez mais vamos arar o campo de Lucana de olhos claros”. Ó Hölderlin, Hölderlin, quanto mais poético, mais real. Cada palavra – matéria fina de toda certeza – a nossa microlíngua a pronuncia e com esta matéria fina tentamos incitar o linho que nos envolve e abisma. O Hino Homérico V (uma nota explicativa à música dos gregos), dedicado à sibila Lucana, finca na retina que é nossa o preceito óptico do califa al-Hakim: “Se o sol que vislumbramos é a sombra do sol, imagine, nesse momento, como é o próprio sol?”. O Vazio do horto no verão, todo de conchas e frutas. A linha das marisqueiras suspensa no aquático. K. recorda uns versos de Alice Ruiz: “Pequeno/tinha um pensamento/a selva/quando crescer. Em algum lugar/na selva/corre grande um pensamento”. Ela ressuscita, cada manhã, com os olhos abertos para que as imagens sigam fluidas na torrente limosa e aprendeu, na caatinga, que a língua dos mortos é de pedra. A cada momento, Lucana, a linha molhada de cílios, cruza, aqui na Villa da Concha (onde nada pode acontecer, a não ser a lenda), com esses fariseus ressoantes e vazios como tambores. Fariseus presos nas sacristias ou nos cartórios, e que só conhecem a letra fria da lei. E passa, Lucana, sob os pórticos da pequena vila, sem o pedrento e a conspiração. Pois esse lugar onde ela vive é Villa da Concha. Nunca vi peixes mais escamosos que os que viçam nesse sumidouro. Ali caules gordos abandonados no lodaçal. A pequena igreja do Carmo, se a vemos daqui do cais de pedra, esconde eucaliptos, figueiras, pinheiros-bravos e o vento muda de lugar, passa antigo pelos cabelos de Lucana, até esvair-se para sempre no perau. Como se rezasse missa n’água, atrás de um fumo leve ou de um rosário de folhas, espio Lucana (ela ainda não me conhece) que desliza na canoa. Villa da Concha, onde não entra nem a morte nem o pecado, onde não entra o mal: a cloaca, o sicário. Aqui, nesse vilarejo à beira-mar, tudo é música de Maria Bethânia, celebram-se as bodas, e a entrega à preguiça é um suave vício. E Lucana, ali na canoa, sua pele interior um pouco molhada, ama o riso, o amor, a divindade. Depois do passeio de canoa, ela encosta-se à varanda e sorve lentamente o chá de laranjeira. Ainda não conhece K., porque a voz de K. vive num casarão colonial, onde passa os dias de sua vida à beira de um túmulo florescido llorando a mares.

E. O. Hoppé, 1926

Alguma coisa nova sempre desvendamos, se estivermos atentos à sombra de um cacto. O espaço, aqui, é estruturado com a sobriedade e a tenra luz de alface espraia-se por tudo. O casarão com arcos de pedra e o lavatório com mosaicos franciscanos; e uma porta envidraçada sobre uma sacada que tem, como único ornato, as flores do espírito santo ondulando. As bilhas de cobre no beiral da varanda: o salitre nunca as enferruja se polidas com lenços. O casarão, que dá vista para o mar, na borda de um abismo que obriga a cerrar os olhos. O que faço eu com essa fenda de guelra na face? Aqui sofro, por detrás da porta envidraçada, por um absurdo que me excede, a eclodir um tufão na alma, a tamborilar o único dente, agudo e penetrante, no céu da boca da arraia. Nesses antiqüíssimos dias de chuva, em que os eucaliptos meditam cousas longas, eu deito sob telhas de barro, passo os dias com envelhecidos tomos de Arcipreste de Hita e, se é domingo, a lente bebo, que leu em Camões, e me clarifico de verde eternidade. Coberto de sombras leves, salpicado de tufos de folhas carnosas e lascas de líquen, o casarão onde vivo se esconde à sombra do alto carnaubal. Um dos tomos de Arcipreste de Hita discute a proposição de Locke a respeito de um vaso. Para Locke “... o volume e a forma estão realmente no vaso. Já a cor, aroma, tepidez e frio não estão”. Aguardo a calígrafa Lucana, aguardo-a com essa loucura viscosa; observo a textura do tabaco que, há cerca de três mil anos, já fumavam os maias. Os eucaliptos, estáticos, que cercam o casarão, desejariam ser esses leopardos que invadem o templo e bebem a última gota dos cálices sacrificiais. Não é mais o tempo de Offenbach e da opereta. Há quem procure o amor de uma mulher para esquecer-se dela, para não pensar mais nela. Esperando Lucana no bar Gallo del Viento pressinto que, daqui a cem anos, meus olhos vão ver o paraíso, sim, mas serão olhos apodrecidos. Lucana marcou encontro comigo no bar Gallo del Viento, porque resolveu conhecer de perto o autor das escrituras que esbocei no branco árido das folhas de papel. Que estejam --- as palavras --- grafadas nas áridas folhas, pode ser belo, mesmo sem pé nem cabeça alguma frase, desde arranjadas de forma harmônica --- elas --- as palavras, as chuvas. Eu escrevo à sombra dos ventos: o volturno, o ábrego, o noto, o lôbrego, o bóreas, os monções, os etésios, os mareiros. Cito uma epígrafe de Camões: “Que quero eu mais, que o mais não seja menos?”. Faz vinte anos estou recluso nesse casarão colonial, emparedado. É daqui que vou sair para encontrar Lucana pela primeira vez e acariciar, em sua alma, os arabescos antigos de uma sala de banhos bizantina.

Klavdij Sluban, 1999

A serenidade de um verso latino escrito num vaso raro ou no quadrado vivo de um quinteto de Brahms que, já nos primeiros acordes, esboça um quarto em alto-mar. K. escuta lundus e batuques africanos no radinho de pilha. Escuta Brahms, como já disse, e também o barulho da geladeira com pingüim por cima. Necessário escavar, escavar com atenção de arqueiro cavalheiresco o minério dos livros. Se, assim arqueiros, ficarmos em estado de óbvia distração, acertamos o centro do alvo mesmo que não haja arco e flecha, mãos e alvo. Necessário fugir entre árvores agarrado ao pescoço dos antílopes, contudo mais necessário, ainda, é abraçar árvores e deitar nas folhas das folhas de relva. Você não entende o minério mas a mente sabe do silêncio. A mente nasceu de um silêncio de Buddah. Antes que o primeiro Buddah sorrisse, o Buddah já estava sorrindo. Não entende a fonte e ela escorre invisível em você. Tudo aqui é simples. Buddah é simples. Sem pressa, observo a brancura dos linhos domésticos e, lá no fundo do jardim abandonado, a fragilidade das árvores providas de espinhos. No casarão colonial angst... stirb im Gestein (o medo... morre nas pedras), e K., se escuta orvalho no olho do peixe, também cuida da água do aquário e da voz que ecoa no bosque. Orvalho: aquilo que refrigera e consola. Suntuosos vendavais circundam o casarão antigo, que está na rua do Corisco, uma construção de grade de pau, com telhados muito imbricados e largos beirais. O rádio alto e o homem taciturno que nele se abandona: K. Arvoredos abandonam sombras indecisas numa das grandes paredes brancas do casarão. O sol marinho dá nas calhas e nas venezianas, nas louças, na moça que anda de bicicleta. K. desce os degraus de pedras soltas, nos galhos do salgueiro vai deixando blusa, calça, sapatos, chapéu, cachimbo num coral de sereias. Vai recitando, em latim arcaico, um mantra marinho para Virgílio (as palavras ele as fisga aleatoriamente de um dicionário): Tot praestat eu componere fluctus. Et vastos volvunt ad littora fluctus. Mainoménon ponticaset vastos. Akúon fluctus rózion polijea rictus. Akúon queria par de zalássi. Thálassas thálassas akúon fluctus. Polijea poisson akúon rozíon. Fluctus tot praestat et vastos. Volvunt fluctus um componere. Et vastos rictus fluctus. Akúon acqua akúon volvunt. Fluctus poisson copo fluctus. Et vastos volvunt ad littora fluctus. Tot praestat componere mainoménon d’água. O casarão colonial: esse espaçoso confim de ar silvestre, essa nuvem arquitetônica entrelaçada ao claro vento. Nesse casarão K. pode tudo: esquecer palavras, não procurar a verdade nem afastar as ilusões. Aqui K. não é K., nada precisa fazer, entanto move-se quando o casarão molha-se de asas. Vai quebrar, antes que se aproxime a noite, o vaso mais raro. Inteiro, o vaso serve a alguém. Quebrado, serve apenas aos deuses.

Mordillo

Vilém Reichmann, 1941

GODOT CHEGOU AO HOTEL SUNSET BOULEVARD
E NÃO ENCONTROU NINGUÉM

Vim a este Hotel Sunset Boulevard, rente ao mar grosso de sal e azul, porque me contaram que aqui estavam me esperando Schopenhauer e Francisca B. Não os encontrei. Não faz mal. Ficarei espiando o mar tranqüilo assim e o visível corpo n’água.

Mar em que nos abandonamos e que cresce em nós com as tormentas, continuará a ser água salgada em desalinho constante e os limites deste mar, fixados em alguma idéia, se confundem com a altura do céu que é claro sem nunca ter pensado: este céu é suficientemente despovoado de anjos e beatas virgens, de tal modo que resta sempre novo céu que podemos exaurir e dele arrancarmos as finas cordas da chuva, a chuva de que é capaz o espírito.

E acontece que, para o espírito, as nossas presentes chuvas, sem consideração moral, são mais molhadas. Aquele que construiu em si a obrigação de molhar os dedos na pia de água benta, sabe que nunca deixará de faltar matéria e realidade à água benta e só terá necessidade de recorrer a ela se, vazio, e para iludir o escuro em si mesmo, tocar a suposta santidade da água que, ali na pia, é água apenas, e isso é tudo para essa água que, sem pia nem beatitude, continua ali e logo evapora. Mas chega de filosofia.

Não vou esperar mais. Daqui posso ver a Tabacaria. Talvez o Esteves saiba onde Schopenhauer — o peixe espinho — e Francisca B. estejam.

Shiva-Shânkara

Há uma luz que brilha mais do que bilhões de sóis juntos. É a essência da alma. Essa é a luz que mora no coração.

Shânkara (788-820 a.C.)

Consuelo Kanaga, 1948

ESTA É A CONFIANÇA QUE TEMOS EM DEUS: SE LHE PEDIMOS ALGUMA COISA, SEGUNDO A SUA VONTADE, ELE NOS OUVE.
(1 João 5, 14)

Pés de ouro equilibram-se em peixes. Inciput erat verbum: no princípio era a palavra. A palavra é clarabóia sobre o pensamento escuro. Jesus cita as antigas escrituras para sugerir que somos deuses. Na fonte fria lavar cabelos, lavar cabelos na fonte fria. Pés de pluma equilibram-se em águas. Tenho confiança em Deus e a Ele peço três coisas, segundo a Sua vontade:

– a força da criança
– a força da poesia
– a força da música