domingo, 13 de setembro de 2009


Fábio Brüggemann próximo à Fonte dos Desejos, na Ilha de São Francisco do Sul/SC.

Ver o blog de Fábio Brüggemann

www.bloguedobruggemann.blogspot.com

Eric Weeks, sem data

Minha querida amiga,
o nosso Reino não é deste mundo nem do Outro. O nosso Reino singra no intermediário, que só pode ser alcançado pela arte: seja ela qual for: escultura, música, pintura, dança, teatro, poesia, prosa, dona de casa.

Escuto o que grafou Cecília Meireles: "Irmão das coisas fugidias, não sou alegre nem sou triste, sou poeta". Não devemos ser felizes nem infelizes, mas atentos à grande árvore que cresce no ouvido. Nosso reino não é deste mundo nem do Outro. Nosso Reino é a serenidade livre.

Devemos estar atentos à pulsão e pulsão nada mais é que "discernimento vital". A arte: discernimento deste discernimento. Se somos ditadores, somos fel. Se discernimos, acordamos a pétala que respira na sombra. E pulsão, o que também pode ser? Um objeto jamais fixável de uma vez por todas. É como se disséssemos que estamos aqui para fixar o que habita no invisível.

Palavras do poeta Dennis Radünz: "O invisível é o excesso de não ser".

E o que chamamos Arte nada mais é que o ato de fixar o discernimento: a pulsão. E a cura? Escutar, no símbolo, pulsão de vida. Se vejo um jarro d'água, por exemplo, tenho consciência de que ele é, ali onde posso vê-lo dentro de mim, apenas uma imagem fugidia. Para captar esta imagem fugidia, antes devo ter uma espécie de afeto por esta imagem. Depois tentar fixá-la com os meios que a Arte me oferenda. Não é ao significante (à palavra) que se deve escutar, mas à vida, ao afeto, que já traz em si sua plêiade de significantes (palavras).

Agora me entenda, minha amiga: trago algo em minha alma que se parece muito contigo. O meu lado feminino está em sintonia com teu mistério feminino. Contudo não devo confundir você com minha alma. Mas você tem sido minha mestra, sim, e por isto me sinto tocado pela tua existência. Eu devo cuidar de minha alma e desejar que cuides de ti. Antes de amar a você, devo amar este Reino que não é deste mundo e que se entrelaça a meus oboés. Isto aprendi, por isto te escrevo agora.

Beth Moon, sem data

A nuvem arrepia-se de febre até às ondas da branca espuma. Lucana folheia o livro do místico Sri Aurobindo: “Não existe mortalidade. É somente o Imortal que pode morrer. O mortal não poderia nem nascer nem perecer”. Lucana agora anda, mergulha, vai ao fundo do mar – la lengua del alma es la pluma –, Lucana anda mais, singra o areal com os cabelos pensos e o pulmão opresso. Mergulha na vastidão molhada. Afunda: onde está o invólucro calcário de uma concha, está o fundo salgado e estranho do mar ondulando mar. Com as mãos consegue arrancar de cima de si as águas e, Lucana assim imersa no vento, já sabe que a língua é de água viva e que a maré vazante afasta o porco para longe daqui. A alma é fúria grande e sonorosa, a coar sombras da ânfora proibida. A mais funda sombra é o porco-demônio que pisca, nervoso, os olhos incrédulos, ri, treme-lhe a mão esquiva, o braço enlouquece, a perna adormece, o pé medita, o tronco dança maculelê, mexe-se na cadeira, levanta-se, senta na cadeira, pisca, cai-lhe o chapéu, tomba o maço de revistas “O Cruzeiro”, ergue o maço acima da cabeça, fala com a parede, com o gato d’água, discute com a sombra do próprio cabelo no lajedo, tenta torcer o pescoço de pedra e chora de rir até os dentes caírem no chão. O porco-demônio (daimónion) é escorregoso, respira cloacas e, claro, nunca é sereno. Tem vezes o daimónion pode regar anêmonas com a marca viva que é, em sua voz, o sobrenatural, ou pode fingir que é pároco da pequena igreja do Carmo. Durante a distribuição das hóstias, pára tudo, as hóstias esquecidas no altar e, com o gesto supremo de quem vai cometer uma barbárie, cata no bolso da batina um pente e passa em seus cabelos de bolha de sabão. Basta um leve toque da ponta do pente em qualquer parte da cabeça do pároco e – catapám – o pároco explode em plena igreja e só se podem ver os nacos dele sujando os fiéis. O deus e o porco-demônio: o punhal de prata na água do poço. O porco-demônio é o punhal de prata que o Deus-água-de-poço dissolve lentamente. Para se distrair, o porco-demônio vai ao hall do Restaurant Palace e, ali, entre plantas exóticas e lustres de cristal, saboreia minguados caranguejos. Contrariado, ele ironiza: “Sempre que provo estes caranguejos, evoco os lagos pitorescos da Suíça”. O garçom estranha: “Perdoe-me, senhor, mas na Suíça nunca houve caranguejos”. O porco-demônio acrescenta, apontando com absoluto desdém, o prato: “Aqui também não.”

Les Krims, sem data


Isto não é maconha, mas você pode fumar.

Cindy Sherman, sem data

Não foi Deus quem me deu a notícia, mas um outro, a recomendação sábia de que a palavra é o mais elevado poder.

Não é de hoje nem de ontem, mas perdurando sempre e sempre surge aquela recomendação sábia, e ninguém jamais conseguiu ver de onde ela surgiu para brilhar.




Palavras de Antígona
No verão amadurecem

os chapéus



BEIRA

Ballot acende mares à ponta dos pés

vai enfiar canoas no sonho que afundou



SAFARI

Levava espelho quadrado
chamava gaiola

capturar paisagem e moça




VENTO

Se as saias erguidas
balançam aos pés do mar

o vento
respira
dentro delas




A BELA DA TARDE

Fui atravessar a tarde

os policiais me bateram riram
cuspiram
condenaram meus olhos a duzentos anos
só porque fui ver

a bela
da
tarde




JOGO DE FIAR

Só morria se o cavalo passasse
ao longo da janela

passava nunca

um dia
o amazonenese desenhou o trem
na parede da casa
foi
ladrilho no olho
para Cusco




CONDE

Conde de Pancarté tem elétrica pantera
flameando entre pernas suadinhas

as que morrerão, as pernas




OSTRA

Nunca sei fazer milagres
soubesse
dava festa
acendia vespas de absoluto vôo
assim como passam os dias
te passava na boca
caju pérola deliciazinha ê
drumia si si sacratim xanxá
embolado em tuas águas




BALIZA

Dois coqueiros
o fio d' luz cruza seus topos

a lua é gol




NO VERÃO AMADURECEM OS CHAPÉUS

Voava cidade foi cair nos cabelos
da castelã calçava luar

dentro do chapéu não havia fundo
podia-se tocar o fim do mundo

Lindalva viu
olhos berloques
que o fim do mundo
é como fim de beijo

semana vem que virá outro




OLHEIRAS

Se vou lento é que engoli tartarugas
passei lenço roxo aos olhos
meu automóvel ficou parado
espera tuas louças




AZULEJO

Ladrilho suja pés de Maria Catorze
que leva resedá a uns deuses no espelho

seus olhos




CRUSOÉ

Órion é milenária

cada um está no seu pó




GUEPARDO

Guepardo vivia (o que o tornava infinito)
vazio a dentro dum banheiro da rua Gonçalves

não consultava relógio
ou respirava estrelas

na terceira poltrona Luzia escutava foxtrote
as veias um pouco na luz
meias nuas em cadeiras vimes

sonhava dentes de guepardo




HISTORIETA

Roubaram muletas do perneta
rezou a Nossa Senhora da Luz
não devolveram

sentado na calçada sorriu

mulheres vieram beijar
o seu único pé





POÇAS

O corcunda de Notre Dame
enquanto o mundo se consumia

pintava em poças magras
a instantânea lua

só porque amava os três tons do azul





PRENOM CARMEM

Passa trem na tela
gaivotas
Beethoven hipnotiza águas
o cego ao entrar faz barulho tropeça
à sombra de um lírio

moça diz que foi nada

o cinema é bom lugar
pra se dizer adeus





VESTIDO

Vestido clareia lua cheia de bolinhas

uma delas é o mundo
assanha os gatos




QUINTAL

Beijar orelha no alto do abacateiro

a coxa dela dói nas minhas linhas





QUEDA

Caiu do alto jacarandá
antes de beijar o chão deu abraços
fez lição de casa andou fumou foi
ao cinema teve um
cachorro
amara Leila Maristela Rita
escreveu esse poema e não morreu

o páraquedas abriu





BIOMBO

Mão de Nadja Maran viraram peixes na hora do rush,
as mãos. E os que
olhassem no fundo nos olhos deles ficavam
nus
nudez tão funda
que nem
o
biombo
os esconderia




A FLOR DE CAQUI DA NUDEZ

Passo dedos em brincos passo
a mão
na flor de caqui da nudez
vês?
abandono um vaso quebrado a teus pés


QUANDO VOLTARAM

Ônibus amarelo furou pneu
ficamos ali sentados
eu e meu amor

ouvindo as conchas que catamos




ROMAN À CLÉ

O faquir acendia postes postes
em cada pendurava o retrato da mulher de sua vida
que lá vem onceira macieza a danada vem
bêbeda
finca ao lado das fotos
a foto do faquir




Todos os poemas acima
foram escritos por Fernando José Karl