terça-feira, 8 de setembro de 2009

Pascal Sebah, 1870

A pitonisa pronuncia que está nevando no outro lado do nada


Sonho que sou uma tempestade perfeita lá no alto, mas, cá embaixo, próximo do cotidiano de um copo d'água e de uma folha que cai, sei que pareço mais a um pequeno sopro de chuva na vidraça e aprendi, nesses dias em que reverencio uma planta bravia que eu chamo de A., aprendi que de ar sou e me interessa muito o que a pitonisa pronuncia perto da veneziana, e ela pronuncia que está nevando do outro lado do nada, e também me diz que posso, ainda, espiar a restinga, sim, eu aqui nesse hotel Continental à beira do azul-mar-grosso-de-sal, em pleno século V dos leões transparentes, eu, durante a sagração dos oráculos, sou aquele que escuto atentamente a pitonisa consagrada, a mesma que pronuncia tudo e tudo sabe e devasta um quarteirão com apenas um suspiro seu ou um andar pelas tábuas do quarto. E, quando anoitece nas grutas, nos pulmões e nos sentimentos indecisos, a pitonisa se desnuda até da pele nua e, agora, a planta bravia que eu chamo A. tem uma cútis de Palmolive e sonha que a tempestade guarda entre as coxas uma claridade que não é desse mundo nem do outro. Ela enche os terraços de músicas, de buracos, de árias, de legiões: sua língua não passa de ar, mas um ar que deleita até mesmo aqueles que sorvem cianureto porque eles têm nostalgia das noites molhadas quando um corpo penetra num corpo alheio: água na areia. Mesmo se eu tivesse a alma rasa e inquieta, a pitonisa viria pra chorar uma estrela em meu tímpano, e também ela viria pra revelar que a única coisa que existe nesse mundo é uma sereia de cabelo azul, e esse cabelo azul traz à tona um saber vasto e profundo, para enfim aprendemos que só escapamos do pó se estivermos atentos à respiração da planta bravia A.: porque diante dela curva-se o que em nós apodrece e, se o desejo for mais fundo no escurento, e se nada temermos da tempestade, a tempestade estará em nós sonhando, e quanto mais no alto formos a chuva, mais acordamos do sonho e penetramos no hall do hotel Continental pra descansar naquela cama com aquela pitonisa agarrada à planta bravia A. que pronuncia o oráculo delicado: não somos nada – as palavras – mais fortes que cada um de nós!

Courret Hermanos, 1860

O Buddha chamava o vazio de "sunyata", o que é o mesmo que dizer que devemos permitir que o Algo (ou Aquele que é o mais profundo) acerte nossa flecha no alvo: o Algo dispara, o Algo acerta: aprender a ficar sem intenção, mesmo na máxima tensão.

Distraídos venceremos: para que o copo se encha de água nova, é necessário que ele esteja vazio. Para que possamos receber inteiro o pôr-do-sol no coração, é importante que deixemos o pôr-do-sol ser o que ele é; e tem outra: o Algo precisa do nosso pobre coração para existir. E por falar na palavra: repito Shakespeare: "Se a palavra é sopro e sopro é vida".

Sabe porque as pessoas desprezam a palavra? Porque ela tem pouca matéria; você desprezaria o miosótis (que é uma pequena flor) só por seu tamanho?

Se uma palavra produz clarões, é porque na raiz ela é fogo. Uma palavra sempre retorna ao invisível e, ali, neste invisível, ela entra em núpcias com o infinito. Contudo não é à palavra que devemos prestar atenção, mas à vida, ao afeto, que já traz em si uma constelação de palavras.