terça-feira, 9 de junho de 2009

Pierre Toutain-Dorbec, 1967



O Diretor-geral do leprosário Santa Água: o senhor Kault.

Fui internado ontem no leprosário de Santa Água. Sofro, aqui, o perverso gozo da derrota inteira, misturado a cabaças com restolhos de sopa e a essa cabeça de bagre – o Diretor-geral do leprosário – o senhor Kault – que se julga gênio, quando o único que pode ser é cabeça de bagre –, e só a tempestade o curaria. O Diretor-geral do leprosário nunca ousa vencer as palavras ou quebrar a gramática, por isso crê na gramática e crê no Deus.

Para continuar inteiro em meio ao vento que espalha os incensos, apaga as velas, afunda os navios ao largo, finjo, esquivo-me, como se eu fosse barata com caspa na sobrancelha e fedesse à carniça.

Nesse inferno onde respiro, dia-a-dia, nacos de mim caem no quarto, no banheiro, no pátio do leprosário de Santa Água. Aprendo, com certa dificuldade, que apenas o silêncio permite desvelar a parte interna de cada coisa contemplada. Depois que sair do leprosário, recordarei com saudade da cozinheira do leprosário, a preta velha Oriki, da monotonia de sua vida cotidiana. Ela será, para mim, a recordação dos amores que tive ou das ondas que nunca foram de ninguém.

A preta velha Oriki – os olhos carcomidos, a língua sucumbida – aprecia lundus e batuques do Congo –, dança o próprio vazio, traz uns olhos a pensar para dentro coisas de fora, e a minha alma se aclara com essa dança da chuva que a preta velha Oriki espalha pelos corredores gelados do leprosário.

Não tenho próximo de mim a figura da ninfa nua no cavalo de água. Será, talvez, por isso, que eu fique horas a observar a preta velha Oriki dançar? Agora ela é, por fora, o que sempre foi no íntimo.

No escritório do leprosário de Santa Água, o senhor Kault coça uma chaga na clavícula. Já sabe que contraiu a lepra, que mora numa Casa de vidro, com escorpiões vivos que podemos ver daqui. Os telhados da Casa de vidro fedem a urina. Sim, a lepra nada sabe da sombra da oliveira ao meio-dia. Sabe de jardins escorraçados, de câmaras de gás, de corpos tocados pela cinza das horas. Por causa disso, nesse leprosário de Santa Água, não sou capaz, ainda, de um sentimento que dure como duram as pedras – serenas – na alma. Tudo em mim é outra coisa: uma impaciência de tigre atrás da neblina, um desassossego crescente e sempre igual, que me faz vociferar que tudo me interessa e nada me prende. Leio um poema:

Um livro

Um livro tem

Um livro tem de ser

Um livro tem de ser um

Um livro tem de ser um machado

Um livro tem de ser um machado para

Um livro tem de ser um machado para o

mar gelado

dentro

de

nós

A respiração sufocada da preta velha Oriki; não a escuto, estou pensando em outra coisa, estou pensando, por exemplo, que nada deveria escurecer o desejo, e que nada nunca destroça as águas do oceano.

Hoje é domingo, não recebi visita. Aqui, nesse leprosário de Santa Água, se narro obscuramente a minha vida sem história, é porque nela só houve esta Casa de vidro e, aos escorpiões que vejo nada digo, nada tenho que dizer.

Walker Evans, 1936



A taciturna da Casa do esquecimento.

Quando vem a taciturna e quebra os canos, a casa fica sem água; a taciturna destroça rosais, canteiros de gérberas e a Casa do esquecimento, onde a taciturna vive, exala um olor verde-mofo.

Para ele a taciturna verte a lágrima no escorpião; a taciturna sopra na pele; para ele ela enche os copos de sol; para ele ela murmura as sombras do amor.

Ele, da varanda da Casa do esquecimento, atira flechas em qualquer um: quem passa à frente da farmácia, flecha no ombro; quem sai da igreja dos Beneditinos, flecha na testa; quem entra no cartório, flecha nas costas; quem sai da lotérica, flecha no pé.

Ele ela: olho no olho, no frio, presos nas profundezas, somem de si para sempre.

Ele:

– Escuto, o machado floresceu.

Ela:

– Escuto, o local não é nomeável.

Ele:

– Escuto, a chuva que a tudo observa cura o enforcado.

Ela:

– Escuto, falam da vida como único refúgio.

Anônimo, 1950



A mulher que se molhava demais
na chuva do passado.

Ela se molhava na chuva do passado, porque certamente o sábio tinha razão quando pronunciou que nunca está chovendo, sempre já choveu.

Se ela soubesse que a chuva só molhava, ficaria mais tempo na chuva.

Dois domingos depois retornei à sua casa e ela continuava molhada com a chuva do passado. Me contou que teve um sonho grotesco: sonhou que, por ordem de Himmler, dois homens da Gestapo penetraram no apartamento do general Schleicher, em Berlim. A filha dele, que abriu a porta, foi fuzilada na hora. Os homens da Gestapo passaram por cima de seu cadáver e, quando Schleicher pegou na pistola, foi fuzilado junto com sua mulher.

As chuvas do passado estavam todas naquele canto da sala, bem ali, ó, atrás do vaso de samambaia. Ela se molhava nessas chuvas, enquanto abria a lata de sardinha.

Julia Margaret Cameron, 1864



As meninas do orfanato Santa Teresa de Ávila.

A primeira vez que entrei naquele estabelecimento – mais conhecido como Açougue de Werther – percebi mesmo algo diferente. Eu solicitei 1 quilo de carne e ele olhou furtivamente para uma edificação logo em frente: o Orfanato das Meninas de Santa Teresa de Ávila.

Na calada do sereno, entre um gole e outro de conhaque, Werther afia faca de matar porco.

Duas horas da madrugada, Werther salta o muro do orfanato.

As meninas dormem, dormem profundamente.

Anônimo, sem data



Hitler (1889-1945) sendo observado por uma planta carnívora.

De um lado do salão da residência de Berghof ficava o jardim-de-inverno com uma varanda contígua. Ali, junto à grande lareira de pedra escalavrada, Hitler costumava passar as noites em companhia de Eva Braun, Goebels e outras pessoas íntimas tomando chá e escutando música de discos em seu gramofone.

No andar térreo ficava a sala de jantar. Nela, num dos recantos sombrios, uma planta carnívora espreitava especialmente a Hitler, que nada percebia.

Sarony, 1895



Geremias.

O rumor das castanholas acorda o louco Geremias, que dorme nos degraus de pedra da mansão dos Wassman.

Só dando no louco Geremias com o gato morto, até o gato miar.

O gato morto não mia nunca, e o pobre-diabo Geremias chuta os vasos de terracota que ladeiam os degraus de pedra; observa que o patriarca dos Wassman o espia de uma das vidraças com medo de que ele arrombe a porta maciça de carvalho da mansão.

Wilhelm Worth Wassman vê o que é o Geremias, logo após torna a deitar-se – obeso que é – mas acordado, de barriga para o ar, com os olhos fitos no teto da mansão. Sorve do samovar de prata um pouco de chá.

O céu cai sobre os dois – Wilhelm e Geremias –, o céu, impassível, sem as rugas do mendigo Geremias, sem as manias do aristocrata Wilhelm, um dia claro assim, ensolarado, já estava lá sobre os convivas das bodas de Canaã, o céu lá estava e viu, com seus olhos claros, o suicídio de Lucrécia, o sacrifício de uma virgem à beira do rio.

Percorreu várias vidraças este céu antiquíssimo, sem acertar com a verdadeira, afinal estacou na enorme vidraça da vasta janela da mansão dos Wasmann, e, se atentarmos bem, nos degraus de pedra, Geremias acaba de morrer ao lado do gato morto.

Henry B. Goodwin, 1920

Brinca às vezes com ela o senhor Artaud – 51 anos –, com a que mora na casa da frente e entra no seu quintal. Tem 18 anos e se chama Laura. Se chega um pouco mais cedo, o senhor Artaud manda ao criado que lhe traga a tina com água morna; quer lavar-se, observar atentamente essa menina que acaba de penetrar surdamente pela porta de seu quarto de dormir e, agora, abandona a cabeça no ombro dele. E, malgrado a diferença dos dois, o almoço foi sereno com truta e salada. O senhor Artaud devora, com alguma pausa é certo, os lábios da menina, a língua, a coxa. Para o fim do almoço, o senhor Artaud relaxa um pouco a gravata do espírito, expande-se, cita algumas aventuras amorosas de outros. Laura, para excitá-lo, fica ainda mais nua (se é que isso seja possível) e pede-lhe que chupe seus flancos como se chupa uma laranja.