sexta-feira, 29 de maio de 2009

Em busca do tempo perdido


Hill & Adamson

Meninos pescadores em Newhaven/EUA.

1847 

Rui Soares, sem data

Uma carne exposta para que ele acaricie. É assim que sinto quando, meticulosamente, ele me despe de todas as peles e me toma por todas as raízes e nervos.

Vamos construir um palácio, ele diz, vamos mudar pra Veneza, vamos rir pelas ruas, dormir embriagados. Vou te arrancar todas as dermes, todas as noites, vou te despir das máscaras, vou te deixar como és, ele diz. Faremos baderna em igrejas, gritaremos palavrões da janela, levaremos os cachorros da rua pro nosso apartamento. Vou lhe fazer um filho e uma tela expressionista.

Eu ainda não entendi se é loucura ou arrebatamento. Meus pés no chinelo suam, não consigo correr sem cair e ele me alcança, me retoma aos beijos. Ele me mantém no laço ardido do amor e ódio, do bem e do mal. Esse amor é filho da guerra, eu digo, somos inimigos. Ele ri, toma calmamente outro gole, me pega pelo braço e me arrasta até o quarto mais próximo. Ali entendo como sou sempre o país mais fraco. Terrorista, eu grito. Ele me lambe todos os vãos, me morde as sobras, me engole. Nossa febre é vida, meu amor, ele sussurra me arrancando a orelha.

Fadigamos alguns minutos, abraçados. Levantamos e saímos rindo pela rua, chutando pedrinhas e falando obscenidades para que as velhotas de portão nos escutem.


Samantha Abreu

Jeffrey Becom, 1987



A porta do senhor Buda.

Minha amiga querida,
o senhor Buda não reverencia nenhum Deus,
nem crê na alma,
nem no paraíso.

O senhor Buda tinha sempre a palavra "sunyata" ("vazio", em japonês) na ponta da língua.

"Sunyata", ao contrário do oco da morte, não dá medo, antes é uma estratégia oriental pra lá de magnífica: tornar-se "sunyata" ou "vazio", por exemplo, para não ser atingido pelo sabre da finitude, pela corrupta voz dos políticos, pela gripe suína etc.

O que há de oco numa xícara é "sunyata", e isto é belo como o Taj Mahal.

"Sunyata"
com a tessitura de átomos levíssimos dá aparência de ser "vazio", mas é pleno de invisível, de angélico prana.

Outro dia li que o prana não é o ar nem o oxigênio, mas matéria fina de toda certeza.

Prana: sopro vital, alento.

A palavra também é matéria fina de toda certeza e sua origem é a mesma que a do fogo.

Shakespeare disse: "Se a palavra é sopro e sopro é vida".

Já pronunciou Kant: "Devemos aprender a sermos invisíveis com mais humildade".

Fernando José Karl