segunda-feira, 13 de abril de 2009


Ânfora grega.

A RESPOSTA DE JEAN COCTEAU

À pergunta: – Se na sua casa pegasse fogo, o que você salvaria? Jean Cocteau respondeu: – O fogo!

Salvação, em hebraico, significa "respirar à vontade".

Há essa ânfora que carrego, ânfora distraída que deixo cair no precipício.

Ao atravessar esta porta, ânfora lavada: só o sonho poderia levá-la ao Santo dos Santos.

Alessandro Gatto

Shânkara Lis, minha filha

Anônimo, 1786

Kairós


Por Aldo Dinucci



De acordo com a mitologia grega, o deus Kairós é irmão de Kronos. Enquanto este representa o tempo quantitativo, linear, que pode ser medido, aquele representa o tempo qualitativo, circular e não mensurável. O léxico grego Liddell-Scott registra os seguintes sentidos para o termo kairós: justa medida, proporção, parte vital do corpo, tempo exato, momento crítico, estação, oportunidade.

Em sua acepção de oportunidade, tornou-se uma noção de uso corrente em vários domínios técnicos na Antigüidade, tais como a medicina, as artes militares e a retórica. Na escultura, significava aquele quase nada que confere perfeição à obra de arte.

Apresento a seguir alguns epigramas que tem como tema o kairós que foram traduzidos por mim do texto grego clássico e selecionados a partir da Antologia Palatina.

O primeiro epigrama se refere ao caráter prático dessa noção, pois, na medida em que se reconhece o aspecto qualitativo do tempo, bem como a existência nele de “janelas” (as oportunidades) que se abrem e se fecham, imediatamente se compreende o valor da arte de se captar o momento oportuno, e que essa captação é característica do sábio. O primeiro epigrama se inicia com a afirmação da importância da captação do kairós de modo a se colher as primícias das coisas, pois àquele que deixa passar o momento dessa colheita é vedado o acesso ao que é valioso e adorável em cada coisa do mundo. O segundo epigrama insiste nessa reflexão fazendo-a passar através de uma imagem: aquele que deixa o tempo oportuno escapar não colhe a rosa no jardim, mas, perdendo o florescimento da roseira, chega tarde demais e encontra apenas espinhos.


Strato (viveu sob Adriano), XII, 197


“Aprende a conhecer o kairós”, disse um dos sete sábios, ó Filipe,

Pois todas as coisas que estão em seu auge são adoráveis.

Também um pepino visto em alguma parte sobre lugares úmidos é primeiro valioso.

Mas depois, quando maduro, é alimento para os porcos.


ΣΤΡΑΤΩΝΟΣ, 12.197

“Καιρν γνθι” σοφν τν πτά τις επε, Φίλιππε·

πάντα γρ κμάζοντ' στν ραστότερα·

κα σίκυος πρτός που π' νδήροισιν ραθες

τίμιος, ετα συν βρμα πεπαινόμενος.


Uma rosa floresce por pouco tempo. Mas, se este tempo se foi,

Buscando encontrarás não uma rosa, mas espinhos.


ΑΔΗΛΟΝ, 1.53.1

Τ όδον κμάζει βαιν χρόνον· ν δ παρέλθ,

ζητν ερήσεις ο όδον, λλ βάτον.


O próximo epigrama é de Paladas de Alexandria, e se refere a uma característica fundamental da captação do kairós: para se colher o momento oportuno é preciso flexibilidade, atenção e presteza. Assim, pode-se colher a ocasião “por acaso”, isto é, ao se perceber a existência de uma porta que se abre no tempo, oferecendo uma oportunidade inusitada que não fora conscientemente buscada, e atravessá-la, aproveitando a ocasião. Por outro lado, aquele que “busca com muito cuidado” muitas vezes nada encontra, pois seu exercício racional e metódico, que o faz concentrar-se num ponto apenas do real, impede-o de ter uma noção ampla e aberta do mundo que o envolve, o que faz com que se percam as oportunidades ou as novas alternativas que aqui e ali se apresentam:


Paladas de Alexandria (séc. 5) , X, 52


Muito bem dito: falaste que Kairós é uma divindade, Menandro.
Falaste muito bem, como um homem nutrido pelas musas e pelos amores.

Pois muitas vezes é melhor aquele que encontra algo conveniente por acaso que o que busca com muito cuidado.


ΠΑΛΛΑΔΑ, 10.52.1

Εγε λέγων τν Καιρν φης θεόν, εγε, Μένανδρε,

ς νρ Μουσν κα Χαρίτων τρόφιμος·

πολλάκι γρ το σφόδρα μεριμνηθέντος μεινον

προσπεσν εκαίρως ερέ τι τατόματον.


O próximo epigrama é o mais famoso e importante no que se refere à representação e à caracterização do Kairós na poesia clássica. É uma descrição detalhada da estátua de Kairós feita pelo grande escultor grego Lisipo. Este, natural de Sicion, era contemporâneo de Alexandre Magno e um dos maiores artistas da Grécia clássica. Sendo um autodidata, aprendeu por si só a arte da escultura estudando as obras de Policlito, e teria criado cerca de mil e quinhentas estátuas em bronze. Lisipo teria feito uma escultura de Kairós tão perfeita que se recusou a vendê-la, dispondo-a no vestíbulo de sua própria casa.

Podemos visualizar em nossa imaginação essa estátua de Lisipo observando as fotos de alguns baixos-relevos da Antigüidade que possuem a mesma caracterização simbólica de Kairós que o escultor grego propusera. Kairós tem mechas de cabelo caindo sobre a testa, mas a sua nuca é calva. Isso representa o caráter instantâneo de sua apreensão: ele só pode ser pego (agarrado pelos cabelos) em sua passagem por nós e, uma vez tendo passado, torna-se inapreensível (não tem cabelos na nuca por onde possa ser puxado de volta). Kairós tem asas nos pés e nas costas. Essas asas representam seu caráter furtivo e veloz, é o tempo que não passa simplesmente, mas, célere, voa. Quanto à sua apreensão, essa velocidade indica a necessidade de que sua captura se dê por meio de uma ação que denote habilidade e eficácia, como o salto preciso do felino experiente sobre sua presa desprevenida. Kairós tem numa das mãos uma balança. A balança é símbolo do equilíbrio e da justiça: Kairós, embora veloz, não ultrapassa a medida. Outrossim, divide os períodos cíclicos com um metron perfeito: primavera e verão, outono e inverno, noite e dia, essas divisões do tempo e seus correlatos vão transcorrendo em absoluta harmonia e de acordo com uma medida, de modo algum aleatoriamente. A lâmina que Kairós carrega na outra mão representa o perfeito corte que se dá entre as diferentes ocasiões, idades e estações, pelo qual se estabelecem diferenças qualitativas entre elas, que as tornam únicas e incomensuráveis entre si. Como, por exemplo, a infância, a adolescência, a maturidade e a velhice de um homem: cada uma dessas idades possui sua atmosfera própria, que a distingue essencialmente das demais; é como se fossem várias vidas numa só, a do menino, a do rapaz, a do adulto, a do idoso.

Kairós, por assim dizer, vai abrindo e fechando portas no tempo, pelas quais vamos sendo levados para mundos qualitativamente distintos. Assim, embora cada um de nós seja um só, desdobramo-nos em vários seres distintos ao longo do tempo; e o mundo, da mesma forma, vai se tornando sempre outro, mundos heterogêneos sendo postos uns sobre os outros, como panos de fundo se sucedendo durante a encenação de uma peça teatral. Por exemplo: as diferentes idades da humanidade que podemos representar pelo apogeu das grandes civilizações, os egípcios, os gregos, os romanos, os modernos, civilizações qualitativamente distintas entre si. A impressão de unidade através dos cortes no tempo se dá pela medida segundo a qual esses cortes são feitos e, correlativamente, a medida e o equilíbrio entre épocas e idades tão diferentes são dados pelos cortes precisos, que conferem a ilusão de unidade e totalidade. Como os desenhos geométricos que pedacinhos de papel colorido ou brilhante vão formando, para um olhar atento, num caleidoscópio.


Poseidipos (séc. 3 a.C.), XVI, 275

Quem e de onde é o escultor? – De Sícion. – Qual é o nome dele?

Lisipo. – E quem és tu? – Kairós, o que a tudo submete.

Por que andas nas pontas dos pés? – Estou sempre correndo. – Por que possuis

asas duplas nos pés? – Vôo ao abrigo do vento.

Por que levas na mão direita uma navalha? – Mostro aos homens

que sou mais agudo que qualquer objeto cortante.

Por que mechas caem sobre os teus olhos? – Por Zeus, sou agarrado quando estou passando. – Por que és calvo atrás?

Pois, uma vez tendo passado com os pés voadores,

ninguém, ainda que queira, me agarrará por trás.

Por qual razão o artesão te modelou? – Por vós, ó estranho:

e colocou-me no vestíbulo como um ensinamento.


ΠΟΣΕΙΔΙΠΠΟΥ

Τίς, πόθεν πλάστης; – ”Σικυώνιος.” – Ονομα δ τίς; –

“Λύσιππος.” – Σ δ τίς; – ”Καιρς πανδαμάτωρ.” –

Τίπτε δ' π' κρα βέβηκας; – ”ε τροχάω.” – Τί δ ταρσος

ποσσν χεις διφυες; – ”πταμ' πηνέμιος.” –

Χειρ δ δεξιτερ τί φέρεις ξυρόν; – ”νδράσι δεγμα,

ς κμς πάσης ξύτερος τελέθω.” –

δ κόμη τί κατ' ψιν; – ”παντιάσαντι λαβέσθαι,

ν Δία.” – Τξόπιθεν πρς τί φαλακρ πέλει; –

“Τν γρ παξ πτηνοσι παραθρέξαντά με ποσσν

οτις θ' μείρων δράξεται ξόπιθεν.” –

Τονεχ' τεχνίτης σε διέπλασεν; – ”Ενεκεν μέων, ξενε, κα ν προθύροις θκε διδασκαλίην.”

Edward Weston, 2000