sábado, 7 de março de 2009

Odilon Redon (1840-1916)

Karl Baden, 1994

Estou lendo, nesse exato instante, um poema de Hildegard von Bingen (1098-1179), que gostaria de compartilhar com vocês:


Porque a mulher criou a morte,

uma virgem clara a dissolveu;
por isso a bênção suprema
vem na forma feminina,
além de todo criado:
o mesmo Deus se fez homem
na virgem doce e beata.

Fernando José Karl.
Ler a novela
A senhora do gelo,
de Fernando José Karl,
autor desse blog.

http://www.germinaliteratura.com.br/booksonline_karl1.htm

A tempestade lá fora aviva tudo o que se move: árvores vergadas ao chão. Schopenhauer ancora a barca Nautikon a um tronco de carvalho e retorna ao Hotel Sunset Boulevard, senta no parapeito do terraço que dá para o mar grosso e franze a testa. O médico lhe deu a notícia dolorosa: só dois dias de vida. Lythia, abalada com o câncer do marido, deita sob o guarda-sol para descansar. Ela, após alguns minutos, lembra a Schopenhauer que não somos nada, nunca fomos nada, e que, apesar disto, podemos guardar na memória todos os jarros de luz que o sol esqueceu à porta dos amantes.

Schopenhauer retorna à varanda deste hotel, à visão do mar. Esqueceu o costume de fazer discursos e, afastando com o gesto a mosca, volta a encarar sem esforço as ondas de salgada branca espuma, as ondas que se destroçam na pedra feito louças. Schopenhauer medita e decide: vai dar um passeio pelo bosque vazio nos arredores da Pacific Coast Highway e assassinar, com soco no ouvido, uma freira carmelita.

No meio do bosque vazio, nesta pacata Vila de Torre Escura, Schopenhauer encontra a freira. Quando ia desferir o soco, ela reage:

– Agora não; você está muito cansado –, e crava um peixe nos ombros de Schopenhauer; um peixe que se debate de forma violenta.

– Você conhece este peixe? – pergunta a carmelita.

Schopenhauer responde que não. O arpão de um raio acerta a nuca de Schopenhauer, que não morre, antes mistura vocábulos próprios e alheios, paisagens de toda sorte, a tal ponto que ele pergunta a si mesmo como é que um homem, que ia morrer dali a dois dias, podia tratar tão friamente uma freira carmelita, a ponto de querer assassiná-la com soco no ouvido?

Sim, Schopenhauer retorna ao Hotel e encontra Lythia que, ainda sob o guarda-sol, folheia o Livro dos Mortos — o Bardo Todol — que diz que, alguns dias após a morte, tudo em nós vira vento e a primeira coisa que vemos é um cavalo, também de vento, e Lythia percebe que o Schopenhauer que se aproxima não conseguiu matar a freira carmelita e ainda trouxe um peixe cravado nos ombros, um peixe que não pára de se mexer.

Schopenhauer pergunta:

— Quanto tempo ficaste ao sol hoje, Lythia?

Lythia responde, espreguiçando-se:

— Há milênios, milênios.

Uma sombra desce ao rosto de Schopenhauer sempre que recorda o prognóstico do médico que lhe disse:

— Só dois dias de vida, meu senhor, só dois dias.

Robert ParkHarrison, sem data

Quando o mestre Kenzo Awa explicava que o tiro com arco consiste em deixar partir a flecha sem a intenção de acertar, de atirar sem apontar, Eugen Herrigel, seu aluno europeu, não pôde deixar de dizer:

– Nesse caso, o mestre deve ser capaz de atirar de olhos vendados.

O mestre pousou nele um olhar prolongado, antes de marcar um encontro para a tarde desse mesmo dia.

Já era noite quando Herrigel foi introduzido no dojo. O mestre Awa convidou-o primeiro para um Cha no yu, uma Cerimônia do chá que ele próprio realizou. Sem proferir uma palavra, o ancião preparou o chá com todo o cuidado e, depois, o serviu com uma incomparável delicadeza. Cada um de seus gestos se desdobrava com a precisão e a elegância que só uma grande concentração pode dar. Os dois homens mantiveram-se em silêncio para poderem saborear convenientemente este harmonioso ritual. Um instante de eternidade, como dizem os Japoneses.

Seguido pelo seu hóspede, o mestre atravessou depois o dojo e foi colocar-se à frente do átrio que resguardava os alvos, colocados a 60 metros de distância. O átrio encontrava-se mergulhado na penumbra e dos alvos apenas se conseguia descortinar os contornos. Obedecendo às instruções do mestre, Herrigel foi lá colocar um alvo, deixando, no entanto, as luzes apagadas.

Na volta, reparou que o velho arqueiro se preparava para a cerimônia do tiro com arco. Após uma saudação dirigida ao alvo invisível, o mestre deslocou-se, dando a idéia de deslizar sobre o soalho. Os seus movimentos sucediam-se com a lentidão e a fluidez de uma língua de fumo que rodopia docemente ao sabor do vento. Ergueu os braços e depois os baixou. O arco retesou-se lentamente, até que a flecha partiu bruscamente, mergulhando na escuridão. O mestre permaneceu imóvel, com os braços esticados, como se acompanhasse a flecha até seu destino desconhecido, como se o tiro se prolongasse numa outra dimensão. Logo a seguir, e mais uma vez, o arco e a flecha voltaram a dançar nas mãos dele. A segunda flecha silvou como a primeira e foi devorada pela noite.

Cheio de pressa e curiosidade, Herrigel foi acender as luzes para ver onde se tinham cravado as duas flechas. A primeira encontrava-se no centro do alvo; a segunda arrancara – dessa primeira flecha – vários centímetros de bambu.

Herrigel foi buscar o alvo e felicitou o mestre pela façanha conseguida. Mas este retorquiu:

– O mérito não me pertence. Isto acontece porque deixei agir em mim Algo qualquer. E foi este Algo qualquer que permitiu às flechas se servirem do arco para se juntarem – fincadas – no alvo.

Retirado do livro A arte cavalheiresca do tiro com arco,
de Eugen Herrigel
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