sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Rodney Smith, sem data

Em lugar de olhos, dois nuncas. A noite é palavra unida à noite essencial. Um diamante iça, em lugar da morte, e da cisterna sombria acordo alado: sem amada, capinzal, mãe, pedra ou labirinto. Em lugar de respirar, a música me vela. A eternidade é o silêncio das tigelas de arroz. Em lugar de estar vivo eu sou um canto, enlouquecido por discordar do roteiro. É desconcertante morrer sem acariciar o pomo dourado da própria voz, e a lenda da pele, que acende com o toque dos dedos. É sempre absurdo não ter direito a um nome, a um quintal com pequenos pássaros intensos. Os erros são todos meus. A luz é toda tua. Quando eu não existir mais, eu também virei recolher os domingos que não passei à beira-mar.

Rembrandt (1606-1669)



Homer Simpson pintado por Rembrandt.


José Saramago.

Tem medo da morte?
Não, até agora não. Isso é uma coisa que nunca sabemos. Não vale a pena dizermos, quando estamos com saúde, «Não tenho medo da morte» e depois, quando sentimos que a situação é grave, podemos realmente ter. Antes do último instante a pessoa não sabe se vai efectivamente ter medo da morte ou não.

E do esquecimento?
Não vale a pena ter medo do esquecimento porque tudo esquecerá. Nada é imortal, nem pessoas nem obras.

Aterroriza-o escrever um livro mau?
Não. Talvez eu esteja enganado, mas creio que até agora nunca escrevi um livro mau. E se amanhã isso acontecer, das duas uma: ou eu chego ao fim do livro e reconheço que é mau e não o publico, ou então se eu não reconheço que ele é mau mas é mau, espero que alguém – a minha mulher, um amigo – me diga: «Aconselho-te a que não o publiques porque isto já não é o que tu fizeste antes, já está muito abaixo». E eu espero nessa altura ter suficiente senso para estar de acordo.

Quem será José Saramago daqui a 50 ou 100 anos?
O autor? Não sei. Quando há pouco disse que todos vamos em direcção ao esquecimento pode-me acontecer, como acontece tantas vezes, que ainda haja leitores que me leiam. Mas vamos pensar em 1000 anos: é duvidoso que ao fim de 1000 anos ainda haja pessoas interessadas em ler o José Saramago.

Considera-se um patriota?
Eu acho que é um sentimento que não vale a pena. O patriotismo presta-se a muita retórica e a muita confusão. Porque as pessoas podem dizer todas que são patriotas e terem por detrás motivos não só diferentes como opostos. Eu não quero nenhum mal ao meu país, pelo contrário quero todo o bem que seja possível. Se isto é ser patriota, eu sou patriota. Mas também posso ter momentos de indignação e de desânimo, quando vejo que o país não está a ser governado como devia. Agora não me pergunte como é que deveria ser. Mas quando eu vejo que estamos numa crise social e económica tremenda e ainda mais numa crise de mentalidade – uma espécie de apatia, uma espécie de indiferença – isso dói-me. Os países começam, crescem e acabam. Um dia acabará este. Vivamos o tempo em que estamos. Há pouco tempo, no Fórum Social de Porto Alegre, eu disse: «Se eu pudesse eliminaria dos dicionários e da consciência das pessoas o conceito de utopia». Porque o conceito de utopia fez mais mal do que bem. A gente põe a utopia num sítio qualquer longínquo, não se sabe onde, depois fala da utopia… A única utopia razoável que podemos falar é o dia de amanhã. O que fizermos hoje tem repercussões no dia de amanhã e essa é a única utopia.

Para que serve um romance?
Para muitas coisas. Em primeiro lugar, porque toda a gente desde sempre gostou de contar histórias e gostou de ouvi-las, e, enfim, um romance é uma história. E depois se serve para alguma coisa mais, isso logo se vê...

Louis Faurer, 1947

Aqui, na Casa de Água, ao lado de Lucana que acabou de adormecer, descanso breves minutos, enquanto enrolo o meu cigarro com as folhas finas de um pequeno livro de mortalhas. Fiz muitos pôncios para amar Lucana, alguns pilatos, depois tive que lavar as mãos no chuveiro. Troquei Lucana por Barrabás, mas logo me arrependi e fui sorver, com ela, um chá verde numa xícara de linhagem. Composição para ouvido: eu preciso aprender a empurrar a chuva até a vidraça que a chuva quer molhar. Escuto a nostalgia que a chuva insiste em esquecer junto à porta. Mais molhada que o mar, a chuva desfaz o meu cigarro de folhas finas, desfaz meus cabelos, minha cabeça, a chuva só deixa intacto o gelo do coração que o sopro de Lucana abrasaria. Do tapete, antes de ir embora, recolho as garrafas de vinho e as pontas da erva-cidreira que fumamos desvairados, eu e Lucana, a tempestade lá fora, o perfume intenso do mar salgado lá fora, Órion e Sirius lá fora e, aqui dentro, acasos e cantigas no sereno oásis, eu e Lucana na Casa de Água escutando a última conta do rosário de neblinas.

Sem palavras

David Bookbinder

Shânkara Lis Martins Karl, minha filha

Matheus Nascimento Karl, meu filho



Sunyata: o vazio.

A palavra: a menor aparência de materialidade. A palavra: matéria fina de toda certeza. O arqueiro quântico se torna um claro espelho do alvo. O arqueiro quântico fixa a mente na menor aparência de materialidade: mesmo no escuro e com os olhos vendados, o arqueiro quântico não erra a imensa curva do vento.


Do livro O caqui e o angorá, de Fernando José Karl.

Experimentos científicos nos mostram que se conectarmos o cérebro de uma pessoa a computadores e scanners e pedirmos para ela olhar determinado objeto, podemos ver que certas partes do cérebro estão sendo ativadas. Se pedirmos para esta pessoa fechar os olhos e imaginar o mesmo objeto, as mesmas áreas neurais do cérebro se ativarão, como se estivessem vendo os objetos. Então os cientistas se perguntam: quem vê os objetos, o cérebro ou os olhos? O que é a realidade? É o que vemos com nosso cérebro? Ou é o que vemos com nossos olhos?


Do filme Quem somos nós?

Acesse já
O arqueiro quântico

www.oarqueiroquantico.blogspot.com

Mestre Kenzo Awa (1880-1939)



Algo dispara a flecha,
algo acerta o alvo.

Quando o mestre Kenzo Awa explicava que o tiro com arco consiste em deixar partir a flecha sem a intenção de acertar, de atirar sem apontar, Eugen Herrigel, seu aluno europeu, não pôde deixar de dizer:

– Nesse caso, o mestre deve ser capaz de atirar de olhos vendados.

O mestre pousou nele um olhar prolongado, antes de marcar um encontro para a tarde desse mesmo dia.

Já era noite quando Herrigel foi introduzido no dojo. O mestre Awa convidou-o primeiro para um Cha no yu, uma Cerimônia do chá que ele próprio realizou. Sem proferir uma palavra, o ancião preparou o chá com todo o cuidado e, depois, o serviu com uma incomparável delicadeza. Cada um de seus gestos se desdobrava com a precisão e a elegância que só uma grande concentração pode dar. Os dois homens mantiveram-se em silêncio para poderem saborear convenientemente este harmonioso ritual. Um instante de eternidade, como dizem os Japoneses.

Seguido pelo seu hóspede, o mestre atravessou depois o dojo e foi colocar-se à frente do átrio que resguardava os alvos, colocados a 60 metros de distância. O átrio encontrava-se mergulhado na penumbra e dos alvos apenas se conseguia descortinar os contornos. Obedecendo às instruções do mestre, Herrigel foi lá colocar um alvo, deixando, no entanto, as luzes apagadas.

Na volta, reparou que o velho arqueiro se preparava para a cerimônia do tiro com arco. Após uma saudação dirigida ao alvo invisível, o mestre deslocou-se, dando a idéia de deslizar sobre o soalho. Os seus movimentos sucediam-se com a lentidão e a fluidez de uma língua de fumo que rodopia docemente ao sabor do vento. Ergueu os braços e depois os baixou. O arco retesou-se lentamente, até que a flecha partiu bruscamente, mergulhando na escuridão. O mestre permaneceu imóvel, com os braços esticados, como se acompanhasse a flecha até seu destino desconhecido, como se o tiro se prolongasse numa outra dimensão. Logo a seguir, e mais uma vez, o arco e a flecha voltaram a dançar nas mãos dele. A segunda flecha silvou como a primeira e foi devorada pela noite.

Cheio de pressa e curiosidade, Herrigel foi acender as luzes para ver onde se tinham cravado as duas flechas. A primeira encontrava-se no centro do alvo; a segunda arrancara – dessa primeira flecha – vários centímetros de bambu.

Herrigel foi buscar o alvo e felicitou o mestre pela façanha conseguida. Mas este retorquiu:

– O mérito não me pertence. Isto acontece porque deixei agir em mim Algo qualquer. E foi este Algo qualquer que permitiu às flechas se servirem do arco para se juntarem – fincadas – no alvo.

Retirado do livro A arte cavalheiresca do tiro com arco,
de Eugen Herrigel
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