quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

"Não há potência má, o que é mau, há que se dizer, é o grau mais baixo da potência, e o grau mais baixo da potência é o Poder. O que é a maldade? É impedir que alguém faça o que pode, que efetue sua potência. De modo que não há potência má, há Poderes maus. Talvez por isto, todo Poder seja mau por natureza. A tristeza está ligada aos sacerdotes, aos tiranos, aos juízes, porque estes proíbem a potência de se expressar. Todo Poder é triste”.


Gilles Deleuze (1925-1995).

Matisse (1869-1954)

Tudo isso acontece em Villa da Concha – esse lugar no mundo perto do Atlântico. K. recolhe das linhas de água e sal o marulho e o amargo da espuma que espicaçam o interior de sua pálpebra, porque sabe que falta dizer a língua antiga com o sopro natural dos ventos. Começa a considerar, como parte do ritual, esse tempo articulado com molas de relojoaria --- a hora --- e bebe no fólio o ditame bíblico: “Pois serão todos salgados com fogo. O sal é bom. Mas se o sal se tornar insípido, como salgá-lo? Tende sal em vós mesmos e vivei em paz uns com os outros”. Águas do céu deixam mais pesadas as oliveiras à sombra de oliveiras. No casarão, exposto às chuvas, K. aprende que a língua das nuvens é a dos ventos e não a língua curial da fealdade. As nuvens arrastam sombras por cima dos vastos telhados do casarão. “Passar”, diz K. “da palavra tosca à palavra clara é sereno purificar-se com água de Alladin, que não deixa no lençol mais do que esta marca simples”. No casarão colonial a voz do orago K.: aragem nas trepadeiras da cisterna.

Thomas Smillie, 1906

K. escreve uma carta ao filósofo Hervum: “A Jarra de Heidegger (Das Ding/A Coisa) é uma imagem e imagem não tem enigma. Não custa nada frisar que a Coisa existe em sua exata natureza e persevera – atua – desprendida da figuração, e é provável que tenha dado origem ao deus babilônio Shamash; às cocléias, homares e conclins; à peônia que pende rente à neve; ao bate-bate de atabaque do batuque; ao acaso que impera. A Coisa – o Outro em exclusão interna. Escavar na ilusão este ponto (.) – quantum – em que a ilusão mesma se transcende, se arrasa, confessando que aí está apenas como significante: um exemplo – a palavra ‘Jarra’ –, de ‘A Jarra de Heidegger’, é significante enquanto essência daquilo que não contém nada. Outras jarras significantes: casca de laranja, de lagosta, de cebola, de crustáceo, de réptil, de sequóia, de tartaruga, de caracol, de ovo, de pão. A jarra de Heidegger – casca de vidro – é um objeto que circunda o Vazio e tenta aclarar a existência deste Vazio no centro do real. Quanto mais o objeto – a Jarra – é presentificado, mais ele nos abre esta dimensão na qual a ilusão se destroça e aspira a outra Coisa – menos a letra do que o espírito do escritor”. A Coisa é babel, bárbara, balbuciante. A Coisa existe mesmo quando não há. As palavras sopraram antes da Coisa e cada sopro delas é um ramo de sutis idílios. A palavra neve: sônica, nívea.

Clare Strand, sem data

HOSOMI


Piscar do espírito:

o paraíso

no sonho

te esquece entre águas e conchas

e, súdito,

ao acordar

te respira

Um grafismo de Fernando José Karl

Rodney Smith, sem data

Em lugar de olhos, dois nuncas. A noite é palavra unida à noite essencial. Um diamante iça, em lugar da morte, e da cisterna sombria acordo alado: sem amada, capinzal, mãe, pedra ou labirinto. Em lugar de respirar, a música me vela. A eternidade é o silêncio das tigelas de arroz. Em lugar de estar vivo eu sou um canto, enlouquecido por discordar do roteiro. É desconcertante morrer sem acariciar o pomo dourado da própria voz, e a lenda da pele, que acende com o toque dos dedos. É sempre absurdo não ter direito a um nome, a um quintal com pequenos pássaros intensos. Os erros são todos meus. A luz é toda tua. Quando eu não existir mais, eu também virei recolher os domingos que não passei à beira-mar.

Schopenhauer (1788-1860)

Há um pensamento do filósofo alemão Schopenhauer, que li em "O Mundo como Vontade e Representação", que reza assim:

O ponto em que a Coisa-em-si entra mais imediatamente no fenômeno é aquele em que a consciência ilumina a Vontade.

A Vontade é, para Schopenhaeur, irracional. A Vontade, no fundo, não sabe o que quer. E, para educá-la, só há uma saída: focarmos as coisas que nos cercam (ou as coisas que imaginamos) com o Vazio da contemplação tranqüila, sem intenção, desapegada.

Segundo Kenzo Awa, mestre do Kyudô (Caminho do Arco), se quisermos acertar o alvo, devemos proceder assim: “Na máxima tensão, sem intenção”.

Algo dispara a flecha, Algo acerta o alvo.

Algo: outro nome para o Deus, para a quintessência.

Mas também Algo

diz pára de ressentimento

diz pára de medo

diz pára de mentir

diz pára de sofrer

diz pára de desamor

diz pára de pobreza

O Eu, que só será Eu se for um Vazio reverente, se torna o claro espelho do objeto. Wu wei: ação na não ação. Noutras palavras, o Eu deixa fluir, reverente, o Algo que o rege no íntimo; o Eu não se intromete, deixa a onda jorrar, a música ser música.

Vazio (Capítulo 1 do Tao): “Não sendo, podemos contemplar sua essência”.

Objeto (Capítulo 1 do Tao): Sendo, apenas vemos sua aparência”.

O Deus, segundo o Evangelho são João, “é Espírito”. E, sabemos, o Espírito sopra onde quer.

Se me permitem um exemplo: Na máxima tensão, o Eu profundo de cada um de nós contempla, sem intenção, a seguinte cena prosaica: um bule que verte chá fervente na toalha de linho. A Coisa-em-si (que é libérrima e irracional por natureza) é que retém a potência profunda do que está acontecendo com este bule que verte chá fervente na toalha de linho. Se o Eu se intrometer nesta imagem do bule que verte chá fervente na toalha de linho, o Eu só terá a fantasia, a farsa, e se transformará num bicho peludo de longas patas, mais conhecido como ego. Por outro lado, se o Eu deixar fluir a Coisa-em-si deste bule que verte chá fervente na toalha de linho, aí o Eu terá a presença do Algo, do Deus que, respeitado em sua ancestralidade, virá à tona e revelará ao Eu todo o Seu Mysterium.

E sendo Mysterium, é improviso, é Vita Nova, é Algo, é o Deus, é paraíso, é jazz do coração.

Nunca é demais recordar a etimologia do vocábulo Deus: vem do sânscrito –, onde é grafado D'jeus e significa lua clara no céu: mente silenciosa, sem sonhar.

De onde se conclui que o Deus, tendo forma lunar, é o feminino.

O Deus, o Algo, é luz, é consciência.

A quem o Deus serve, a quem o Algo serve? A todo Eu que tiver consciência do Deus, do Algo.

Quando pronuncio a palavra feminino, não me refiro à mulher, mas ao Ser, que tanto pode ser macho ou fêmea.

Há homens que são mais femininos que as mulheres.

O cano do canhão é o pênis masculino; os edifícios pontiagudos são pênis masculinos; o punhal é o pênis masculino.

A árvore é feminina; a pérola é feminina; o vento é feminino.

A Coisa-em-si: aquilo que independe do espaço e do tempo.

A Coisa-em-si independe da causa e do efeito.

Segundo Platão, uma Idéia é aquilo que sempre é, mas nunca vem a ser, nem deixa de ser.

Idéia: objetividade imediata da Coisa-em-si.

Para Schopenhauer, a Coisa-em-si é pulsão vital (a Trieb freudiana: força vital). Pulsão como discernimento vital? Ainda mais: pulsão como discernimento vital do discernimento vital.

Pulsão (a partir de um aforismo de Lacan): objeto jamais fixável de uma vez por todas.

Fixar o que não pode ser fixado, isto é função da arte que cria a consciência que ilumina a Vontade.

Para Schopenhauer a maior das artes é a música. Ele a menciona em "O Mundo como Vontade e Representação": se tudo findasse, ainda não findaria a música.


O texto acima, inédito, é um fragmento do livro O cacto e o angorá (o aqui e o agora) – A arte vazia do arqueiro de palavras, de Fernando José Karl.
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June Sira

Paolo Scalera