quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O segundo encontro: visita à Casa de Água de Lucana. Estirando-se num fluxo e refluxo de ondas, o mar – sultão lascivo – respinga nas plantas, pedras e silêncios de Villa da Concha. Casa de Água --- vagarosa, protegida com vasos de terracota; anjos enfiam-se pelas frinchas. A varanda em duas águas, com telha cerâmica, apóia-se sobre as cimalhas com finalizações em recortes. Leio Sophia de Mello Breyner Andersen: “Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro, sabendo que o real o mostrará”. Aqui na aquosa casa, eu, K., encontrei várias de minhas culpas, umas mais velhas, outras mais moças, e todas ávidas que eu fosse ao quarto escuro adormecer na alma sóbria de um copo d’água, na alma extinta de Lucana, que sempre me pareceu a mais lânguida culpa moça. Entre as culpas velhas, uma bruxa de mil anos que escurece a sombra. Aqui contemplei, no quarto de dormir de Lucana, sombras marinhas espalhadas pelas paredes lisas. Também vi Lucana sonhando e ela sonhava que era um pássaro com três longas penas azuis, uma árvore no vendaval, um filósofo tateando gatos brancos. Pensava a sibila no seu curto sonho: “Por que fingir ser Lucana, se posso ser qualquer coisa?” Depois desci à cozinha para encontrar, em cima da tábua de cortar peixes, uma epifania escrita em papel de pão:

Cavaquinho

Ostras no bafo vagens brotos verdes

água no copo

água tônica de quinino

cavaquinho no sereno

a voz rouca do gramofone na sala de jantar:

repuxo a brasa para minha sardinha

ostras no prato

rosas e murtas no jardim da Casa de Água

evohé Bakkhus moeda de ouro

faisões des vers antiques

um xote para violoncelo e galinha caipira

sala de jantar domingueira

papagaio na gaiola

dessacralização da ode

As salsas ondas do mar cicatrizam feridas fundas. Águas de vento, aroma de canícula. E, no maralto dessangrado, algumas ondas de fina renda, angras corroídas pelas ondas. Às vezes, à meia-noite, nem secas nem molhadas as salsas ondas do mar, nelas flutuando – água viva – o torso de Lucana que guarda em si, não o cântico da sereia, mas o que, segundo Kafka, é – dela – o mais terrível segredo: o silêncio. Pudesse eu reter o teu fluir, ó ondas espessas de halo salino, e minha mente atenderia mais a harmonia oculta que a harmonia visível; eu, K., que sempre havia precisado, para escrever, de Vazio e de belos relâmpagos. Nem que seja na imaginação, para escrever eu preciso me sentir num dos cômodos do Taj Mahal. Lucana esparze óleo de Santo Ignácio sobre o salso elemento: um sono na barca transparente – as algas, os corais. Junto aos ramos de uma oliveira tardia, ela preferiria luz de canoa verde, mas o deus Orum quis que ela fosse um sono na barca transparente. Lá fora chove torrencialmente e o rádio dá a notícia que barcas naufragaram e o mar revolto lanha as costas rochosas e as areias. Lucana: uma leoa na neve --- suas cravas se agudizam. Preferiria uma cachoeira na alma, mas a deusa Kalami sentencia: vai ser leoa, neve. Amanhã ela vai ao cabeleireiro, ao Mercado Municipal e ao Cemitério. Lucana silente no tronco de amarga oliveira. Lucana inteira: dama-do-lago, açucena, o golfo-da-flor-branca. Compra uns livros raros no sebo. Confere o dinheiro e só tem duas moedas de ouro. No teu corpo, Lucana, tu me pertences, sete anos de brisa no cativeiro. Foste da mesma matéria do ópio que sorvi no cais à espera da barca. Acerco-me de ti, ó música de loucos, para queimar o pulmão nos astros. O silêncio – escuto-o de olhos fechados – conduz aos espinhos e bálsamos. Na verdade, o pomar de laranjeiras só existe nos sonhos do pássaro, que aguça o tímpano e recorda que no teu corpo, Lucana – apinhado de estrelas – a voz sem voz habita no Jardim da Sacerdotisa, que à noite venta, de manhã é luz.

Nenhum comentário: