quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Alguma coisa nova sempre desvendamos, se estivermos atentos à sombra de um cacto. O espaço, aqui, é estruturado com a sobriedade e a tenra luz de alface espraia-se por tudo. O casarão com arcos de pedra e o lavatório com mosaicos franciscanos; e uma porta envidraçada sobre uma sacada que tem, como único ornato, as flores do espírito santo ondulando. As bilhas de cobre no beiral da varanda: o salitre nunca as enferruja se polidas com lenços. O casarão, que dá vista para o mar, na borda de um abismo que obriga a cerrar os olhos. O que faço eu com essa fenda de guelra na face? Aqui sofro, por detrás da porta envidraçada, por um absurdo que me excede, a eclodir um tufão na alma, a tamborilar o único dente, agudo e penetrante, no céu da boca da arraia. Nesses antiqüíssimos dias de chuva, em que os eucaliptos meditam cousas longas, eu deito sob telhas de barro, passo os dias com envelhecidos tomos de Arcipreste de Hita e, se é domingo, a lente bebo, que leu em Camões, e me clarifico de verde eternidade. Coberto de sombras leves, salpicado de tufos de folhas carnosas e lascas de líquen, o casarão onde vivo se esconde à sombra do alto carnaubal. Um dos tomos de Arcipreste de Hita discute a proposição de Locke a respeito de um vaso. Para Locke “... o volume e a forma estão realmente no vaso. Já a cor, aroma, tepidez e frio não estão”. Aguardo a calígrafa Lucana, aguardo-a com essa loucura viscosa; observo a textura do tabaco que, há cerca de três mil anos, já fumavam os maias. Os eucaliptos, estáticos, que cercam o casarão, desejariam ser esses leopardos que invadem o templo e bebem a última gota dos cálices sacrificiais. Não é mais o tempo de Offenbach e da opereta. Há quem procure o amor de uma mulher para esquecer-se dela, para não pensar mais nela. Esperando Lucana no bar Gallo del Viento pressinto que, daqui a cem anos, meus olhos vão ver o paraíso, sim, mas serão olhos apodrecidos. Lucana marcou encontro comigo no bar Gallo del Viento, porque resolveu conhecer de perto o autor das escrituras que esbocei no branco árido das folhas de papel. Que estejam --- as palavras --- grafadas nas áridas folhas, pode ser belo, mesmo sem pé nem cabeça alguma frase, desde arranjadas de forma harmônica --- elas --- as palavras, as chuvas. Eu escrevo à sombra dos ventos: o volturno, o ábrego, o noto, o lôbrego, o bóreas, os monções, os etésios, os mareiros. Cito uma epígrafe de Camões: “Que quero eu mais, que o mais não seja menos?”. Faz vinte anos estou recluso nesse casarão colonial, emparedado. É daqui que vou sair para encontrar Lucana pela primeira vez e acariciar, em sua alma, os arabescos antigos de uma sala de banhos bizantina.

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