quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Ver 7 grafismos de Matisse

Chema Madoz, sem data

A SOMBRA

A respiração na eternidade é assim:
se a serpente de sombra azul respira,
respiramos.

Se ela pára de respirar,
morremos.

A serpente de sombra azul
passeia sem bússola pelo paraíso.

Deus a criva com setas de canitar.

A serpente morre,
morremos.

Deus nos ressuscita no terceiro dia,
sem a serpente,
só com a sombra azul.
Ver Kimiko Yoshida

http://www.kimiko.fr/
Ver "Absurda",
do czar do bizarro David Lynch

http://br.youtube.com/watch?v=75dQpZ9-skQ

Susan Burnstine, sem data

Para não morrer durante esse poço de marasmo que me acontece sempre que vou estender lençóis no varal, eu, K., desvendo o véu de Ísis e, por trás do véu, o que vislumbro são umas letras – racimos de pérola – que devem ser ouvidas como palavras que sabem o que fazem. Fizeram concha, ar, Órion?. Ou foi o Cristalino quem as ventilou? Shakespeare: “Se a palavra é sopro e sopro é vida”. Quando querem, as palavras deixam-se aprisionar pelo sopro e fingem que são concha, ar, Órion. As palavras: sombras que nada conhecem, a não ser que indiquemos – a elas – a fenda no beco por onde espiam que – sendo palavras – são sereias visíveis. Para não morrer, escuto Erik Satie: Trois gymnopédies. Para não sucumbir aos acontecimentos ínfimos e às felicidades cáusticas, eu preciso entoar mantras, vocábulos, e mergulhar na piscina, na arbor vitae, na consolação da noite.

Edward Weston

Ao amanhecer está Lucana adormecida na cama larga, entre copos de bebida emborcados, cesto de frutas --- kiwi, mamão --- e restos de sonhos, enquanto o Cristalino, frente à janela escancarada, fuma erva-cidreira e escuta no gramofone a voz de Caruso. A árvore fora de mim: é por ela que subo até às vidraças azuladas da Casa de Água, onde o vento acorda de cabeça para baixo: soprar o vento para as bananeiras e para as constelações. Aqui na varanda espio o Cristalino fumando e um fervor de agáricos nos troncos da amarga oliveira. Observo as finas cordas da chuva que serenam d’água os telhados de Villa da Concha. Calmo, podia inventar o paraíso, silêncio a silêncio, sombra por sombra. Seria um silêncio criador – fonte aberta ao acaso – busca incessante do gume ileso do vocábulo: silvo de fogo na geleira e nunca a lentidão líqüida de algas apodrecidas.

Leviathan
No capítulo 7 do Horto de Leviathan, de autoria daquele mesmo anônimo da filosofia escolástica, uma nota aclara o único argumento convincente a favor da ressurreição do corpo. Eis a nota: “Quem construir uma pia baptismal no mantra, coloca plantas vivas na água, desprende-se da concretude e retorna ao princípio, ou àquilo ‘anterior ao princípio’, quando ‘antes que a primeira vela se acendesse, a vela já estava acesa’”. Cansada da fraqueza extrema, que sempre a enlanguesce nas primeiras horas da manhã, Lucana decide urinar no antifonário, após ter lido pela quinquagésima vez o insosso fólio do Glossarium latinatis. Que ela urine na própria saia de organza ou nas pedras do deserto, mas nunca no antifonário, porque nele está escrito, com letras de missal, que o cinismo é casca frágil e só nos salva da extinção a pureza das linhas de um Modigliani ou essas estruturas coruscantes de reflexões sardônicas. Lucana, no ensombrado quarto de dormir, ao cerrar os olhos profundos, observa miniaturas de afrescos gregos que parecem se guardar de um contágio indigno. Para não acordar Lucana, saio pisando musgo. Esqueci de regar as plantas no casarão. Antes de ir, ainda espio mais uma vez, à sombra do jarro de rosas, um breve orvalho na nudez daquela que dorme – de acordo com a descrição de Lezama Lima –, feito uma “pequena caixa de cristal, cheia de alfinetes e agulhas, e que, mesmo situada na última peça da casa, ainda sente quando o bonde passa”.

Barnaby Richards

Confira o site "Atlantic Press"

http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.atlanticpressbooks.com/clientpics/Funeral1.jpg&imgrefurl=http://www.atlanticpressbooks.com/fall.htm&h=300&w=300&sz=43&hl=pt-BR&start=17&um=1&tbnid=wcqc99yHAM6AdM:&tbnh=116&tbnw=116&prev=/images%3Fq%3Dfuneral%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN

Se eu, Fernando José Karl,
fosse mulher, eu seria assim.
Não há verdade senão a do desejo.

O inconsciente deriva do que é puramente lógico, ou em outros termos, do significante.

Nos curamos ao ouvir, no significante, pulsão de vida.

Segundo Saussurre, "o significante é uma realidade psíquica construída por uma imagem acústica".

Exemplo 1: xícara.
Exemplo 2: búfalo.
Exemplo 3: faca.

Palavras tais como: amor, pensamento, alma, alegria, paz não podem ser significantes, posto que não formam imagem acústica.

O significante não é a palavra que se pronuncia ao enunciá-la. Não adianta, portanto, recitar xícara, búfalo, faca.

O significante não é o som da palavra, mas uma imagem acústica que não precisa da voz.

O significante habita o silêncio.

Xícara forma a imagem da xícara e tem um som peculiar
ou acústico: x-í-c-a-r-a.

Búfalo forma a imagem do búfalo e tem um som peculiar
ou acústico: b-ú-f-a-l-o.

Faca forma a imagem da faca e tem um som peculiar
ou acústico: f-a-c-a.

O significante habita o silêncio.

O significante é o inconsciente (ou Deus ou amor ou o fluido integrativo ou o sim) em ação.

No inconsciente só há sim. Não há não no inconsciente.

O inconsciente é sim primordial, fluido integrativo, afirmação: nele não há não.

A não ser que eu deva dizer não ao cansaço, à preguiça, à mentira.

Para finalizar: a via régia, real, para o inconsciente é, para usar uma expressão de Augusto de Campos, uma “linguaviagem”, sempre em direção a outro tempo e a outro lugar, uma micro-língua em vero exercício que não se confunde com as línguas genéricas, coletivas ou convencionais, as quais alimenta e vivifica; ainda que se pareça à língua comum, comunicativa, transgride seus usos, evita suas sintaxes, afeta sua morfologia e redistribui seus valores semânticos.


Este artigo faz parte de um livro que o dono deste blog Nautikkon --- Fernando José Karl --- está escrevendo sobre "A essência da linguagem". O título do livro é "O arqueiro quântico".

Max Thorek, 1930

O venerável superior Hans Daff, da abadia de Wassal, no balneário de Ó, põe os óculos redondos e, fingindo que folheia com unção o vago registro no caderno católico, não deixa de observar que, ali na sacristia, a nuca da menina é perfumada.

O venerável convida a menina para que sente em seu colo.

Quinze anos tem Laurinha; o venerável espera que saiam todos e a mão com o grosso anel de ouro enfia-se no musgo entre as coxas da menina que ainda não sabe, que ainda não pode saber.

Os lábios molhados da menina, a nuca perfumada, o repique dos sinos. Alguns padres desfiam o rosário no átrio.

Aqui é o balneário de Ó envolto em neblina, onde atracam as barcas que descem o rio. Folhas do tamarindo caem, num abandono previsível, e, se erguermos um pouco os olhos, deparamos também com aquele céo antiqüíssimo e monótono. Contudo, o que se percebe mesmo é que o vento e os homens, as pedras e as mulheres só cuidam de si, nunca desconfiam que, nesse minuto, na abadia de Wassal, o venerável Hans força a menina a ficar de de quatro e a beijar o crucifixo.

Caio

Letícia Passowski, sem data

O sol, na manhã lavada, é a sombra do Deus. Ficamos ali vendo as mulheres mergulharem no oceano para esquecer, enquanto nos teus olhos li que a morte é a única sombra: manhã com céu a incendeia. Há no céu imensas curvas de cristal, e na cama os esqualos, faltasse água, morreriam à luz seca do meio-dia. Por isto fomos ao oceano com baldes de alumínio
caçar águas

Clare Strand, sem data

HOSOMI

Piscar do espírito:

o paraíso

no sonho


te esquece entre águas e conchas


e, súdito,


ao acordar


te respira

Sem palavras

Milenko Kosanovic

Sem palavras

Safo (nascida no século VII a.C)

UM POEMA,

de Safo


Contemplo como o igual dos próprios deuses
esse homem que sentado à tua frente
escuta assim de perto quando falas
com tal doçura,

e ris cheia de graça. Mal te vejo
o coração se agita no meu peito,
do fundo da garganta já não sai
a minha voz,

a língua como que se parte, corre
um tênue fogo sob a minha pele,
os olhos deixam de enxergar, os meus
ouvidos zumbem,

e banho-me de suor, e tremo toda,
e logo fico verde como as ervas,
e pouco falta para que eu não morra
ou enlouqueça.


Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos

Anônimo, 1920

ELEGIA: INDO PARA O LEITO,
de John Donne


Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu Anjo, és como o Céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu Anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.
Deixa que a minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha Mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo
Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo)sem vestes.
As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.


Tradução: Augusto de Campos.