terça-feira, 4 de novembro de 2008

Jeanloup Sieff, 1970

UM ANCORADOURO HÁ NA VIDA
COM BARCAS BRANCAS

Estou na cabina da barca que balouça menos.
Tuas asas, bem-amada, lentas espirais

que enraízam em ventos florais.
Estou na cabina da barca orlada de espumas.

Gaivotas e sol alto imersos no silêncio,
porque de sol e silêncio é tua substância

que respira o manancial de brisas vivas.
Carregas teus primórdios na barca branca,

em cuja proa desvendo tua voz com sede
da tranqüilidade que vela o ancoradouro.

Súbito um peixe azul salta das águas,
traz na guelra o teu segredo, bem-amada,

que diz que no sonho, antes de ser pássaro,
és o espírito voador – cintilas a sílfide.

Kishin Shinoyama, 1968

ARTESANIAS DE BONGÔ
NO HOSPÍCIO COLÔNIA SANTANA

Talvez um dia queiramos pertencer
aos frisos brancos do hospício Colônia Santana.

Lá podem ser encontrados inscritos no muro:
a. gato com sobrancelhas de nuvem
b. violoncelo de verão
c. prelúdio em si bemol para conchas
d. certa música que só pode ser adivinhada,
nunca escutada.

No hospício Colônia Santana soam bongôs.
O vento vaza imensas curvas de cristal.

Diane Arbus, 1966

BALADA PARA CÉU E PEDRA


Sonhei a pedra do sonho,
estava rachada com vozes

que vinham de arcas-de-ferro.
Misturadas ao vento,

cada uma das vozes,
vozes fisgando aguaçais,

fisgando poços, rosas, sais,
que sonham na pedra do sonho.

Mais antigos que palavras:
aguaçais, poços, rosas,

sais desvelados por olho
que sonha pedras que sonham

céus nunca vistos no céu

Anon, 1880

O ESCRITOR

O escritor sabe que finge quando diz
“jardim na clavícula
é um consolo inesperado”.

Também sabe
que não é das coisas de fora que fala,
mas de silêncios internos
aptos ao concílio das formas.

Conclusão: estando assim, de frente,
testemunha enodoada de tão rigorosa realidade,
o escritor descobre que não finge quando diz
“jardim na clavícula
é um consolo inesperado”.