terça-feira, 19 de agosto de 2008


Paulo Leminski (1944-1989)

Ver a Mulher-Cristo
de calcinha
e crucificada,
do ousado e polêmico
Dominic Rouse.


http://www.youtube.com/watch?v=MeYA7GKot3U

Dominic Rouse, 2002


A BELLE ÉPOQUE DOS TRANSATLÂNTICOS


Da torre sineira do transatlântico,
com a mente silenciosa, sem sonhar,
o silêncio a tudo contempla, ilumina,
e o vento passou do mesmo modo

para que Homero, que nunca existiu, o escutasse,
escutasse o silêncio que, na torre sineira,
perde luz no vão de cercas,
esfrega serpente na ostra,

na ostra o silêncio da pérola,
na pérola a mente silenciosa, sem sonhar,
guarda em seu relicário

o sossego, o chá, a preguiça,
o chá de alecrim, a preguiça do orvalho,
o sossego da torre sineira no silêncio.

Larry Wiese, 2005


Alguma coisa nova sempre desvendamos, se estivermos atentos à sombra de um cacto. O espaço, aqui, é estruturado com a sobriedade e a tenra luz de alface espraia-se por tudo. O casarão com arcos de pedra e o lavatório com mosaicos franciscanos; e uma porta envidraçada sobre uma sacada que tem, como único ornato, as flores do espírito santo ondulando. As bilhas de cobre no beiral da varanda: o salitre nunca as enferruja se polidas com lenços. O casarão, que dá vista para o mar, na borda de um abismo que obriga a cerrar os olhos. O que faço eu com essa fenda de guelra na face? Aqui sofro, por detrás da porta envidraçada, por um absurdo que me excede, a eclodir um tufão na alma, a tamborilar o único dente, agudo e penetrante, no céu da boca da arraia. Nesses antiqüíssimos dias de chuva, em que os eucaliptos meditam cousas longas, eu deito sob telhas de barro, passo os dias com envelhecidos tomos de Arcipreste de Hita e, se é domingo, a lente bebo, que leu em Camões, e me clarifico de verde eternidade. Coberto de sombras leves, salpicado de tufos de folhas carnosas e lascas de líquen, o casarão onde vivo se esconde à sombra do alto carnaubal. Um dos tomos de Arcipreste de Hita discute a proposição de Locke a respeito de um vaso. Para Locke “... o volume e a forma estão realmente no vaso. Já a cor, aroma, tepidez e frio não estão”. Aguardo a calígrafa Lucana, aguardo-a com essa loucura viscosa; observo a textura do tabaco que, há cerca de três mil anos, já fumavam os maias. Os eucaliptos, estáticos, que cercam o casarão, desejariam ser esses leopardos que invadem o templo e bebem a última gota dos cálices sacrificiais. Não é mais o tempo de Offenbach e da opereta. Há quem procure o amor de uma mulher para esquecer-se dela, para não pensar mais nela. Esperando Lucana no bar Gallo del Viento pressinto que, daqui a cem anos, meus olhos vão ver o paraíso, sim, mas serão olhos apodrecidos. Lucana marcou encontro comigo no bar Gallo del Viento, porque resolveu conhecer de perto o autor das escrituras que esbocei no branco árido das folhas de papel. Que estejam --- as palavras --- grafadas nas áridas folhas, pode ser belo, mesmo sem pé nem cabeça alguma frase, desde arranjadas de forma harmônica --- elas --- as palavras, as chuvas. Eu escrevo à sombra dos ventos: o volturno, o ábrego, o noto, o lôbrego, o bóreas, os monções, os etésios, os mareiros. Cito uma epígrafe de Camões: “Que quero eu mais, que o mais não seja menos?”. Faz vinte anos estou recluso nesse casarão colonial, emparedado. É daqui que vou sair para encontrar Lucana pela primeira vez e acariciar, em sua alma, os arabescos antigos de uma sala de banhos bizantina.

Fred Smith, sem data


A iguana em meio ao juncal é bom, o salmo 69 não é mau. Sem ser da mesma linhagem que a do salmo, aquela em Villa da Concha, segundo me confidenciam, é Lucana na Casa de Água. Ela vai grafando linhas vazias no dorso escamoso da iguana. Ela --- água de chafariz --- que cai aquática e ressuscita aquática. Folheia o missal das pedras, e particularmente a brisa. Possui a técnica de o fazer, do missal das pedras, uma gravura de fino cristal. Lucana retorna à Casa de Água onde reside, entre azulejos da parede, arcas-de-ferro e mandacarus do sertão. Ela e o suntuoso vendaval. Uma neblina se dissipa. A partir de um átrio aberto, espia-se a monotonia da Casa de Água. Jorra o cântaro a gramática líqüida ou o fluxo solar da indecisão aquática. O peixe principia a feder pela cabeça. Casa de Água principia a clarear pelas telhas. Se o peixe é de pedra nunca fede. A partir de um átrio aberto, erra a epifania, não em lavanda, mas em cacto ou apenas arabesco de cacto. Logo na entrada se vislumbra o crânio de uma vaca com rosas da caatinga e um árido chão. Lucana abana moscas, vocifera claros nomes serenos. Simplificada a Casa de Água até o rigor franciscano de uma gravura de Balthus, e onde por único adorno, além de tomos de Xenofonte numa estante de cedro, há cactáceas em púcaros de barro. A um recanto do living Lucana, a ler duas folhas de prosa, aproxima da talha das abluções o lado amargo da língua, depois vai regar o silêncio do Jardim de Pedra, vai regar o jasmineiro, o corvo, o biombo de fino papel japonês, a âncora. Com o viscoso lodo das palavras, com o granizo e com a nevasca das impressões verbais, desvela-se a seqüência harmônica da Casa de Água de Lucana, casa que é um sonho onde não se dorme, sonho vivo, fora do sono, entrelaçado silêncio de cacto e sopro. Jardim de Pedra que a raga indiana rega, também cheira a Vazio e viço de alecrim. Tudo está em chamas: a retina, a coróide, a alta árvore na audição de Orfeu. Tudo em chamas: aquele ponto, no leito dos rios, onde remansam as águas; o cesto feito de taquara; o vinho negro e forte; o sentimento que nasce do contato com episódios gratuitos – seja a dor, seja a alegria – tudo em chamas. A lâmina da morte abrasa a iguana e a reduz a cinza. Imersa em profunda fonte fria, Lucana, na cama de chuva, os olhos macios e perdidos, escuta, com órbita teimosa de bicho calado, que, segundo Petrarca, “...de um polido e vivo gelo provém a chama que a calcina e a destrói e tanto as veias resseca e a alma esboroa...”, que, invisivelmente, ela se degela. Lucana, a senhora do gelo, desvela nos búzios que a existência do céu apenas demonstra que somos ossos, não existimos, e só o céu dura na pura claridade matinal.