sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Maija McDougal, 1920


TERCEIRA VIAGEM PARA BIZÂNCIO
Opus 3 – O vaso

Tocar o vaso de Bizâncio vivo,
mesmo a sombra na parede branca,
bem como o sopro

que o escultor Guyau Ouspenski
esqueceu na superfície de louça azul
do vaso de Bizâncio.

O céu do deus nos exilou – nós aqui –
e para alcançá-lo só temos, talvez,
alguns grãos de alaúde e Saaras de palavras:

vaso, sopro, louça.

Helen James, 1910


OS OLHOS DO ADORMECIDO

Esfinge ao sol, enquanto durmo.
Se eu acordasse agora, então o quê?
Um olho aberto, outro fechado,
a esfinge sonha com meus olhos.

Meus olhos nessa luminância
dos olhos da esfinge de cal.
Meus olhos são alísios, alívios
nos olhos da esfinge no pátio.

Esfinge apagando altas estrelas,
que depois meus olhos reacendem.
E por que esfinge, por que olhos?

Seria mais simples não haver vida
– nenhuma palavra –
seria mais simples não morrer.

Peter Potter, 1920


SE EU MESMO FOSSE O INVERNO SOMBRIO
(A cisterna --- Opus 1)

Eu ouço a fonte dos tontos.
Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais dentro dele.

Manoel de Barros



Caí na cisterna abobadada de Bahr El Khabeer
para escutar mel nas ostras,
para escutar a fonte dos tontos,
para escutar o sumo solar.
Aqui na cisterna tenho orgias de latim
e sou virgem de mulheres.
Meus olhos cobertos por vidros fumados,
de aros muito grossos e talvez prateados.
A cisterna mormacenta sufoca,
enquanto rememoro as cavilações
daquela noite de runas que vaticinou:
eu só poderia clarear o inverno sombrio
se eu mesmo fosse o inverno sombrio

David Francis, 1935


CRÓTALO

Ouro nos cactos que circundam a Casa de Água:
crótalo, crótalo, crótalo.
Folha de hortelã imersa no chá frio.
Georgia O’Keeffe morde conchas finas.

No domingo recalcitrante o fresco de águas
indo entre galhadas e pedras.
Folha de hortelã, oásis, xícara de chá.
Georgia O’Keeffe sorve,

para assombrar o assombro:
ouro-crótalo, fina água de goivo,
um risco de lágrima na concha.

Escolhe a carnação do cristal,
adoça a espinha do peixe
na música que se derrama nos ouvidos.

Maija McDougal, 1918


VISITA À CASA DE ÁGUA

Lá encontrei várias de minhas culpas,
umas mais velhas, outras mais moças,
e todas ávidas que eu fosse
ao quarto escuro adormecer

na alma sóbria de um copo d’água,
na alma extinta de Georgia O’Keeffe,
que sempre me pareceu
a mais lânguida culpa moça.

Entre as culpas velhas,
uma bruxa de mil anos que escurece a sombra.
Esqueci pérola enferrujada na crosta da ostra.

Suntuosa monja com torso de neve,
Georgia O’Keeffe sabe que há uma fonte
além do vento e da morte.

A cisterna que a contém recende
a um acorde de pólen.

Trevor Jones, 1925


A LENDA DO ARVOREDO DE OURO

Georgia O’Keeffe

sob uma das árvores do arvoredo de ouro
a fina chuva de ouro
nunca a desperta

Georgia O’Keeffe

congela um salmão na língua
a fina chuva de ouro
descongela o salmão

Georgia O’Keeffe

no alagadiço rente à árvore de ouro
a fina chuva de ouro
musicaliza a garganta

Georgia O’Keeffe

reza o breve rosário de buirás
a fina chuva de ouro
remansa olho de cacto

Frank Williams, 1928


O CRISTAL SERENO E A SOMBRA

Sombra de pássaro no muro da Casa de Água.
Sombra de um cristal sereno que é,
no sonho antigo,
mais que pássaro, mais que sombra,

é assim nem que fosse a respiração
de um animal com olhos de abismo:
abismo então para todo lado,
abismo no sonho, no peixe, na sina,

abismo no assombro do pássaro
que, se pousa no telhado,
é anjo que não sabe a fala humana,

porque a fala é a luz da sombra
e cordas vocais de pássaro, claras,
se no sonho Deus se sonhar pássaro.

Frank Williams, 1931


ORAGO DAS CHUVAS

Águas do céu nas oliveiras à sombra de oliveiras. Na Casa de Água, exposto às chuvas, o orago transcria para o silêncio a alma de lagartos no vendaval. Passar da palavra tosca à palavra clara é serena operação da brancura, que não deixa no lençol de ervas bordado mais do que essa marca d’água. Esse caldo de águas do céu: um alento para oliveiras à sombra de oliveiras. Na Casa de Água o orago é aragem para as trepadeiras no algibe. Na garganta um recinto aquático para pássaros, na garganta palavras que o vazio sopra.

Godfrey Phillps, 1931


CACTO

A partir de um átrio aberto espia-se a monotonia da Casa de Água. Jorra o cântaro a gramática líqüida: o fluxo solar da indecisão aquática. O peixe principia a feder pela cabeça. Casa de Água principia a clarear pelas telhas. Se o peixe é de pedra nunca fede. A partir de um átrio aberto, erra a sorte, não em lavanda, mas em cacto ou apenas arabesco de cacto. Logo na entrada se vislumbra o crânio de uma vaca com rosas de Calico, árido chão sombreado a nuvens.

Sam Weller, 1931


CLAROS NOMES SERENOS

Georgia O´Keefe abana moscas,
assídua freqüentadora da Casa de Água, em Abiquiu,
vocifera claros nomes serenos.

Simplificada a Casa de Água
até o rigor franciscano de uma gravura de Balthus,
e onde por único adorno,
além de tomos de Xenofonte numa estante de cedro,
há cactáceas em púcaros de barro.

A um recanto da Casa de Água,
a ler duas folhas de prosa,
aproxima da talha das abluções
o lado amargo da língua.