quarta-feira, 26 de março de 2008

Francine Murahara


Kantele: instrumento musical construído por Polo Cabrera
Violino ao som da saliva


o sabor do ácido me desce à garganta
e o dia percorre a água na ferrugem
nos lábios férreos que beijam a estrada
vocifera um som metálico
e sua a última tinta do meu rosto
carvão-grafite na paisagem de uma janela

hoje

mais uma vez o corpo some, sim,
líquido perdido

o perfume situa o sem-sentido
vago, vazio ou mesmo fúnebre
e com o círio tento tatear-me
no clarão que insiste na brancura

e ao
torcer o azul até que a retina
tatue uma valsa
a boca saliva outro ritmo
e o olhar natimorto dança nas cordas

spalla

que orquestra uma tela, pedra ou sol,
onde aos poucos um som abre
o breu
pulmão fígado pâncreas coração
rígidos em câimbra

um vermelho-pálido se mistura a bracurazul
não mais rosto, não mais sangue
umas vozes que se perdem ao sinistro som

ao mundo

som e saliva, violino, voz
meu não-rosto não mais me assusta
se ainda me debato sobre o que se perde
pura resistência

porque já comi o próprio timbre
mordi a língua
amputei pernas e braços
cedi órgãos para uma tela
abandonei o sangue noutro corpo

e

a música que se impõe
desce à garganta engolindo cores e cordas

da voz a última lembrança:

anos carregando corpo ao som férreo de fantasmas



Marco Vasques

Les Krims


Doutscha
Chuva torrencial
nos arredores de Bremen


Chuva torrencial lá fora e aquela mulher de nome estranho – Doutscha – acende uma erva.

O vinil rodando na vitrola.

Próximo à janela envidraçada, o guarda-chuva aberto e a repentina sombra que ele tatua nas paredes. Cessa uma chuva, principia a neve. A mulher de longos cabelos negros, que tem a alma compassiva, confidencia:

– Neste momento – ela diz como quem se surpreende – a neve, olha a neve...

Tento conversar:

– Quer que cesse a neve? Quer um cigarro? Trago fósforos.

– Não, a neve, olha a neve...

Pois Doutscha foi sempre uma consoladora para quem, como eu, na vida aprecia a lógica e pretende que existir seja uma raiz quádrupla do espírito. Há chuvas que Deus mesmo envia, e são aguaceiros no vazio, nos telhados das casas e nas vidraças. Recolho-me, não aos esconderijos que os outros têm, mas à sombra da ampla árvore nessa rua de Warmstrasse. Desço os lábios à bica d’água atrás da igreja luterana. Tenho caligrafia regular, sal até nas lágrimas, e os meus livros eu os grafo com mergulhar a pena da melancolia no tinteiro velho, enquanto, ao lado daquela árvore mais escura, alguma deusa com a pele transparente me sorri. Tenho amor a isso de haver a deusa Doutscha e eu acariciá-la, talvez porque, essa noite, eu não tenha mais nada a fazer a não ser enrolar uma erva, escutar Chet Baker.

Ou talvez Doutscha só exista nesta narrativa, da mesma forma que o amor de uma alma só pode respirar à beira do vulcão, e, se temos por sina dar amor, tanto vale se o dou à xícara com chá de artemísia ou ao colosso das constelações.

Tenho, muitas vezes, o hábito de fumar cigarros Gauloises.

Que me é esse disco que flue na vitrola um Chet Baker, salvo o instante ocasional em que a agulha toca a pele do vinil e a música, senhora das minhas horas, consola os dias noturnos da melancolia?

Trata-me bem, Doutscha, escuta-me com doçura, salvo nos momentos bruscos em que, por tédio ou inércia, eu te apunhá-lo a clavícula com a faca enferrujada.

Desconhecida, sim, és, Doutscha, mas por que me preocupa um símbolo, uma escada de pedra, um mergulhar o pão no café, e a razão, Doutscha, o que é?

Leio aqui O Livro Negro, de Thamès Carda: “Para mim a morte explica-se como História Natural, como aquilo que tornou possível o pensamento. Se temos uma meta, parece-me que só pode ser a morte. Tudo o que se diz é sempre sobre a morte. O nosso nascimento lança-nos numa amnésia, ávidos de mar grosso e de palavras, ávidos de algumas sombras de amor. Tentamos ressuscitar a xícara e fracassamos, o fôlego e fracassamos, tentamos ressuscitar o que somos nesse instante e fracassamos, porque não se trata de ressuscitar ou não, trata-se de sumir numa Fuga – de Johann Sebastian Bach –, para não se sabe onde, para onde não se sabe mais”.

À sombra de um ventilador, numa casa pequena e repleta com vasos de plantas, lembro-me de tua nudez, Doutscha, lembro-me dela no futuro com a saudade que sei que terei.

Nos arredores desse pequeno jardim buscarei a chuva.

De meu coração, eu pressinto, uma carpa de fogo escapa em andante lentíssimo e fura a cortina do quarto que a brisa estufa de leve e, pelo buraco que a carpa deixou na cortina, eu não verei o vento que não vejo agora.