sexta-feira, 21 de março de 2008

Flauta sem boca à procura de música


ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina
e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua
a palavra escoa da boca como flauta sem música
pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço

na casa em que nasci tudo se doa sem cerimônia
da carne em nevralgia ao beijo na mão do carrasco
morde o verbo e trinca a sorte no próprio corpo
para não entregar o sacerdócio do útero a outra casa
para não comer o farnel das dores em outra mesa
sobretudo para não morder a escuridão antes do tempo
e erguer um sanatório na tessitura da pele

agarra com os dentes a música durante o sono
porque a telegrafia dos sons dorme no antigo
retrato familiar onde o mutismo irônico da face
revela o mutuário parentesco em moratória
e no sorriso ancestral mais uma música perdida
porque o silêncio pronuncia a afania da fraternidade

na minha cama o desejo messiânico sufoca
a passagem do dia e o reinado dos lençóis
na isquemia absoluta de qualquer hedonismo
reduz a imagem da valsa dos corpos
à paralisia do timbre de uma voz que não ouço
de um corpo congelado que não reencontro
de um sorriso sujo desenhado no algodão que toca a carne
de uma ilusão pregada nos olhos que não vejo
de um braço amputado que se debate numa tela de Modigliani
e que nunca foi pintado

na minha carne o desejo messiânico sufoca
a passagem dos anos e no vitral primitivo das horas
ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina
e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua
a palavra escoa da boca como flauta sem música
pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço

e tudo que nos resta ao final do dia são os olhares acusativos
daquelas antigas fotografias amarelecidas num álbum qualquer

e o silêncio da numerologia estampada nos túmulos
a soarem nos nossos ouvidos
flauta sem boca à procura de música.



Marco Vasques

John Cage (1912/1992)
Escutar 3 obras-primas
de John Cage


Variations III (1962-63)

http://br.youtube.com/watch?v=LwsgAyZvgwY&feature=related


27 sounds manufactured in a kitchen - John Cage

http://br.youtube.com/watch?v=mGrhL49-YQw&feature=related


Marcel Duchamp and John Cage

http://br.youtube.com/watch?v=mJ5Cl30_KvE&feature=related



John Milton Cage nasceu em Los Angles no ano de 1912 e morreu na cidade de New York em 1992. Compositor musical experimentalista e escritor norte-americano. É o autor da famosa peça 4'33", pela qual ficou célebre. Criada em 1952, a peça consiste em 4 minutos e 33 segundos de música sem uma nota sequer. Foi um dos primeiros a escrever sobre o que ele chamava de música de acaso --- e que outros decidiram rotular de música aleatória. Também ficou conhecido pelo uso não convencional de instrumentos e pelo seu pioneirismo na música eletrônica. Participou do movimento Fluxus que abrigava artistas plásticos e músicos. Cage também era um colecionador de cogumelos.

Não escutar a obra-prima
de John Cage:
4'33''
não tocada por David Tudor

http://br.youtube.com/watch?v=HypmW4Yd7SY&feature=related


Ler aqui tudo sobre 4'33''

http://www.alb.com.br/anais16/sem14pdf/sm14ss04_08.pdf

Um Manuel Gago para Dennis Radünz


7 olhares humanos

Hermann Widensohler, 1900


Elliott Erwitt


Dick Swift


Carl Uytterhaegen


Anon


Andrej Glusgold


André Kertész




Míriam Santini de Abreu
A convite do jornalista Eduardo Schmitz, Míriam Santini de Abreu, uma das editoras de Pobres & Nojentas (www.pobresenojentas.blogspot.com), está escrevendo uma coluna mensal para o jornal Observatório, que circula em Taió, Pouso Redondo e Salete --- cidades de Santa Catarina. Leia agora duas crônicas desta talentosa jornalista gaúcha:

http://www.observatorio.jor.br/frame/frames_18_19.htm

http://www.observatorio.jor.br/frame/frames_14_15.htm

Sem palavras


O gato e o rato empalhados à entrada do Museu de Taxidermia, em Boston/EUA

Yasujiro Ozu (1903/1963)
Ver Yasujiro Ozu

http://www.youtube.com/watch?v=c-R8o-GKjFY&feature=related

Fernando Pessoa (1888-1935) andando em Lisboa
Um poema é a projeção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir a palavras.

Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar da própria disposição da mente, que Campos estabelece. Desde que se usa de palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual. A palavra contém uma idéia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente científica, que não ressume qualquer suco emotivo. Por isso não há exclamação, nem a mais abstratamente emotiva, que não implique, ao menos, o esboço de uma idéia.

Em tudo que se diz – poesia ou prosa – há idéia e emoção. A poesia difere da prosa apenas em que escolhe um novo meio exterior, além da palavra, para projetar a idéia em palavras através da emoção. Esse meio é o ritmo, a rima, a estrofe; ou todas, ou duas, ou uma só. Porém menos que uma só não creio que possa ser.

A poesia é superior à prosa porque exprime, não um grau superior de emoção, mas, por contra, um grau superior do domínio dela.

Na prosa mais propriamente prosa – a prosa científica ou filosófica –, a que exprime diretamente idéias e só idéias, não há mister de grande disciplina, pois na própria circunstância de ser só de idéias vai disciplina bastante.

Na prosa mais largamente emotiva, como a que distingue a oratória, ou tem feição descritiva, há que atender mais ao ritmo, à disposição, à organização das idéias, pois essas são ali em menor número, nem formam o fundamento da matéria.

Na prosa amplamente emotiva – aquela cujos sentimentos poderiam com igual facilidade ser expostos em poesia – há que atender mais que nunca à disposição da matéria, e ao ritmo que acompanhe a exposição. Esse ritmo não é definido, como o é no verso, porque a prosa não é verso.

Campos é um grande prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo; mas o ritmo de que tem ciência, é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso.

A disciplina é natural ou artificial, espontânea ou refletida. O que distingue a arte clássica, propriamente dita, a dos gregos e até dos romanos, da arte pseudoclássica, como a dos franceses em seus séculos de fixação, é que a disciplina de uma está nas mesmas emoções, com uma harmonia natural da alma, que naturalmente repele o excessivo, ainda ao senti-lo; e a disciplina da outra está em uma deliberação da mente de não se deixar sentir para cima de certo nível.

A arte pseudoclássica é fria porque é uma regra; a clássica tem emoção porque é uma harmonia. Quase se conclui do que diz Campos, de que o poeta vulgar sente espontaneamente com a largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim.

A disciplina do ritmo é aprendida até ficar sendo uma parte da alma: o verso que a emoção produz nasce já subordinado a essa disciplina. Uma emoção naturalmente harmônica é uma emoção naturalmente ordenada; uma emoção naturalmente ordenada é uma emoção naturalmente traduzida num ritmo ordenado, pois a emoção dá o ritmo e a ordem que há nela, a ordem que no ritmo há.

Na palavra, a inteligência dá a frase, a emoção o ritmo. Quando o pensamento do poeta é alto, isto é, formado de uma idéia que produz uma emoção, esse pensamento, já de si harmônico pela junção equilibrada de idéia e emoção, e pela nobreza de ambas, transmite esse equilíbrio de emoção e de sentimento à frase e ao ritmo, e assim, como disse, a frase, súdita do pensamento que a define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou a si, o serve.


Fernando Pessoa