segunda-feira, 17 de março de 2008

Anon, 1890


A gueixa Yuki
Da barca Nautikon, que paira acima da enseada, Mister Magoo observa, com o periscópio, as imensas curvas de cristal que o vento esquece nas telhas, nas janelas e, por último, o vento dá um rasante e paira – invisível – sobre a cama da gueixa Yuki – belo animal selvagem.

Outono por dentro e por fora das casas e ainda é manhã na baía da Babitonga.

Quem vislumbre a barca Nautikon – e no ladrilho livros de Schopenhauer e Hilda Hilst espalhados – quem a vislumbre flutuando assim rente a uma grande nuvem barroca, cuida que Mister Magoo espia, pela escotilha, aquela princesa nua e adormecida; uma princesa nua de neve que, ao virar-se no lençol, desvela uma quieta água; mas, se observo com mais acuidade, posso dizer que Mister Magoo vê a barroca nudez e o serpentário de cabelos da gueixa Yuki – longos, negros.

Quem teria sido Mister Magoo antes da primeira respiração? Nada.

Que é neste exato momento? Marujo da barca Nautikon e que olha para o templo de Khajuharo que traz em si – construído, mármore por mármore, na alma; olha para a toalha no banheiro (uma toalha com inscrições de um íbis nevando no outro mundo, que lhe ofereceu o filósofo Mo tsi); olha para as casas e para as canoas na orla da baía, para o quintal repleto de cerejeiras, para as mulheres que molham os dedos na água benta e se ajoelham, para as barcaças e veleiros e para as nuvens; e tudo, desde o sobrado onde respira a gueixa Yuki até a toalha onde o íbis neva, tudo se encontra imerso numa bachiana de Villa-Lobos ou numa frase de cristal.

Les Crims



A senhorita Chuva

A propósito de algumas caligrafias de Georgia O’Keeffe, tive agora um pressentimento do pó que sou. Eu quis me fazer monja no convento das Carmelitas e tive que aprender muito sobre jarros e hidráulica. Jarros valem o mesmo que nada e a retina onde se molham, menos ainda. Uma sereia, tornando a escutar aquelas ondas de grosso mar sob a embarcação, encontraria nela Ulisses amarrado ao mastro e remadores com cera nos ouvidos. O filósofo naturalista colheria da cena elementos para desvelar a loucura. Um que seja furioso bate a cabeça no muro e descobre que mais vale andar pela varanda do que fincar no peito um arpão, e observa que as linhas da chuva que se espalham contra a vidraça também escreveram, em grego aquático, pelas calhas, a ode que ninguém pode ler.

Nesse ano entrei para o Clube dos Vencidos da Vida. Nos encontros dominicais é costume bater o martelo e vociferar: “Os olhos vão ver o paraíso, sim, mas serão olhos apodrecidos”.

Uma noite, como saísse do conservatório – fui escutar um quinteto de Brahms – encontrei com a senhorita Chuva e fomos tomar chá. Imagine: chá na boca de chuva da senhorita Chuva. Era aquática figura de ninfa: os cabelos, os olhos de água. Já foi possuída nos terrenos baldios: os brutos todos penetraram as ancas da senhorita Chuva, chuparam laranjas em seus flancos, e um pouco daquele ar distante que tinha, perdeu-se. Ninguém mais viu sua inocência exilada.

Ao chá conversamos sobre como assassinar aqueles que a violaram e, pouco depois, de hidráulica aplicada, o que me assombrou bastante; o usual nos encontros era conversarmos sobre louças, abismos.

Depois do encontro com Senhorita Chuva, uma lufada de vento me ergue do chão e sobrevôo os casarios com pomares e um coro de anjos, com mais de cem asas, grita que os imperadores antigos não encontraram o alimento que procuravam e, só por isso, morreram.

Água da chuva nos olhos mortos, senhorita Chuva.

Miran