quarta-feira, 5 de março de 2008

Anônimo


Maria Colino


Anon

Tem uma fenda a mente; desta fenda pode-se vislumbrar a palmeira
A moça na esquina sabe que ser é estar em algum ponto. Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer. Eu tenho uma simpatia natural por esta moça na esquina, a única que sabe que meu nome é Rimsky-Korsakoff. Posso orgulhar-me de haver elaborado a Teoria de Física Poética que confirma:

– Dizer que qualquer jarro de ouro da Pérsia arruína a retina é o mesmo que dizer que qualquer imagem arruína o olho? O jarro de ouro da Pérsia, quando visto, não volta mais à forma antiga.

O sopro que escuto, vindo de entre as longas folhas das bananeiras, me conta que a sétima lição de Sappho é passar a navalha no pescoço do cliente.

Eu não ter bebido um copo de cachaça esquece-me sóbrio sentado aqui nessa cadeira de barbeiro. Observo o barbeiro sem saber se vejo a tesoura que apara as hastes de minha cabeleira.

Na esquina há outras moças e também aquela que sabe que ser é estar em algum ponto. Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer. Na outra margem relvada está a mente: o frescor.

A mente sabe que, sob a árvore daquela frase, Ovídio espanca o muro com jasmins. O céu acima do muro: azul que nunca envelhece.

Tem uma fenda a mente; desta fenda pode-se vislumbrar a palmeira e, embaixo dela, o Buddah: que não crê em Deus, que não crê na alma, que não crê no paraíso. Os olhos de Buddah são realmente cristalinos: fitam-me do fundo da fenda da mente com um presságio qualquer.
7 fotografias de Kimiko Yoshida
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ROSAS

Não aos naufrágios, não à morte
que tinge de nada nossos lençóis.
Sim aos sóis, e há tantos
e se aprofundam em nossas águas.

Não fui sonhado para a eternidade.
Disso eu sei e com certa amargura.
Fui sonhado para ser o sonhador
de certa matéria absurda e diamante.

Disso eu nada sei – de estar aqui.
E quase me iludo com esse chumaço
de rosas nas vértebras, rosas nunca criadas

por mim – a mais absurda
das carnes e que arde paraísa chama
e sonha em ser nunca a morte, mas as rosas.

MAS O POETA MORA A SÓS NUMA CASA DE ÁGUA
(De um poema de Hilda Hilst)

Um sol de gelo paira a Casa de Água:
o que eu adoro é ninfa imaterial,
agreste brancura da flor de mandacaru,
dançar na Casa de Água de Kimiko Yoshida
ou sonhar o pescoço de Vishnu,
depois rabiscar águas com barcas brancas.
O sonho humano se abrupta nos escolhos.
Kimiko Yoshida lambe, com língua de vaca,
o sal do megafone.

No seu túmulo, grafado em pedra, inscreve-se:
eu fui uma Casa de Água.

O CRISTAL SERENO E A SOMBRA

Sombra de pássaro no muro da Casa de Água.
Sombra de um cristal sereno que é,
no sonho antigo,
mais que pássaro, mais que sombra,

é assim nem que fosse a respiração
de um animal com olhos de abismo:
abismo então para todo lado,
abismo no sonho, no peixe, na sina,

abismo no assombro do pássaro
que, se pousa no telhado,
é anjo que não sabe a fala humana,

porque a fala é a luz da sombra
e cordas vocais de pássaro, claras,
se no sonho Deus se sonhar pássaro.

JARDIM DE PEDRA

O jasmineiro, o corvo,
o biombo transparente, a âncora.
Com o viscoso lodo das palavras,
com o granizo e com a nevasca das impressões verbais,

desvela-se a seqüência harmônica
da Casa de Água que é um sonho onde não se dorme,
sonho vivo, fora do sono,
entrelaçado silêncio de cacto e sopro.

Jardim de pedra que a raga indiana rega,
também cheira a vazio e viço de alecrim.
Um arabesco abrasa a iguana,

sem reduzi-la a cinza.
Imersa em profunda fonte fria,
Kimiko Yoshida descansa na cama de chuva.

VISITA À CASA DE ÁGUA

Lá encontrei várias de minhas culpas,
umas mais velhas, outras mais moças,
e todas ávidas que eu fosseao quarto escuro adormecer
na alma sóbria de um copo d’água,

na alma extinta de Kimiko Yoshida,
que sempre me pareceua mais lânguida culpa moça.
Entre as culpas velhas,
uma bruxa de mil anos que escurece a sombra.

Esqueci pérola enferrujada na crosta da ostra.
Suntuosa monja com torso de neve,
Kimiko Yoshida sabe que há uma fonte

além do vento e da morte.
A cisterna que a contém recende
a um acorde de pólen.

CRÓTALO

Ouro nos cactos que circundam a Casa de Água:
crótalo, crótalo, crótalo.
Folha de hortelã imersa no chá frio.
Kimiko Yoshida morde conchas finas.

No domingo recalcitrante o fresco de águas
indo entre galhadas e pedras.
Folha de hortelã, oásis, xícara de chá.
Kimiko Yoshida sorve,

para assombrar o assombro:
ouro-crótalo, fina água de goivo,
um risco de lágrima na concha.

Escolhe a carnação do cristal,
adoça a espinha do peixe
na música que se derrama nos ouvidos.

LEVO CAPINZAIS D’UMA ÍNTIMA SOLEDADE

Chovam capinzais e a Cassiopéia na tua frase!
Chovam antiqüíssimas estrelas no teu gelo!
Esguichos de unicórnio e quintal de cinamomos,
meu amor, minha concha, meu osso de Trakl.

Coroada de branca espuma a brisa, barcas o mar,
caixa-de-música o ar e água pura a fonte,
enquanto zaranza o vendaval e o quarto se acalma,
o crisantempo de Kimiko Yoshida se alucina.

E que te orvalhem no jardim dos camaleões.
Durma até, durma, que eu te ressuscito.
E ao adormeceres comigo, sem que me toques,

possa a minha árvore branca
oxigenar a pura fonte no pedrento,
meu amor, meu labirinto incrustado de cornucópias.

Andei viajando por aí, estava com saudade de vocês. Li algo que talvez interesse. A autora é Bernadette Bricout e o assunto é Orfeu: "Mas se procuramos nos voltar para vê-lo (a Orfeu), aprisioná-lo nas tarrafas da análise e nas armadilhas das definições unívocas, ele também se esvanecerá como fumaça".

Horace Bristol, 1933


Hoje acordei com saudade de tudo o que poderia ter sido e que não foi, das mulheres que amei, das que perdi, dos beijos que dei, do vento que escutei nas longas noites de São Francisco do Sul. Tudo dói em mim. Acordei com a recordação da Casa dos Mortos que me transpassa o coração de lado a lado. Acordei só e espiando as ondas destroçadas e brancas no mar longínquo. Acordei com a sensação de não pertencer a ninguém e a nada, mas sei que isto não é o vazio, talvez seja amor e queima por baixo de minhas vértebras. Acordei em 1933, com a vaga sensação de ser este homem de chapéu aí em cima na foto de Horace Bristol.


Dinah Washington (1924/1963)
Escutar Dinah Washington

http://app.radio.musica.uol.com.br/radiouol/player/frameset.php?opcao=umcd&nomeplaylist=009172-8<@>What_a_Difference_a_Day_Makes

Única imagem de Cleópatra conhecida



Apenas uma efígie de Cleópatra cunhada em moeda de prata (esta acima) é considerada autêntica: um busto seu que pode ser visto no Museu Britânico, Londres/Inglaterra.



Toalha branca usada por Cleópatra. Pode ser vista no Museu do Cairo, Egito. Cleópatra Thea Filopator (em grego, Κλεοπάτρα θεά φιλοπάτωρ) nasceu na Alexandria no ano de 69 a.C. Foi a última rainha egípcia da dinastia de Ptolomeu. O nome Cleópatra significa "Deusa Amada por Seu Pai".
TOALHA ARTEX

Eu cuido mais da toalha Artex
caída no ladrilho do banheiro. Cuido menos de chuvas
que vergam árvores contra muros.

Nada posso com chuvas,
mas enxugo a ninfa nua na cama
imersa em serenos lençóis.
Fujo à praia e ante o touro do mar,
eu,
com a toalha Artex,
tento enxugar o mar.
O mar silencia e corre em disparada
contra minha figura que estanca no areal.
Tento sair dali, mas não é nada:
o touro do mar apenas uma onda,
transparente, azul,
lava os pecados,
encharca a camisa que esqueci
embaixo do céu.