quinta-feira, 31 de julho de 2008


As Danaides
LES BAINS DE CARACALLA

Sonhei tanto, sonhei tanto, que não sou mais daqui. Às águas da piscina de Caracalla levo a alma, --- na piscina nadam cinco Danaides ---, levo a sede às cacimbas. Com pureza entro na barca do pensamento; agora sei que as Danaides é que arejam a língua da piscina. Há dentro de mim uma água que não existe. Há uma fonte além do vento e da morte: nela água é humilde. A cisterna que a contém recende a um acorde de pólen. A música é haste de gramínea entre os cabelos das Danaides. Esqueci minha língua de piscina no tímpano de uma delas --- a com o leque.

Quino


Manuel Álvarez Bravo, 1920


Eu escrevo o dia inteiro, cá fora, junto ao pequeno pavilhão de estilo oriental e sob a árvore daquela frase; árvore que finca raízes no calcário friável composto de sílica e argila. Não esfrego serpente nem ostra na cara. Não falo grego e siríaco, mas o silêncio escuta o movimento hierático de minha clara língua. Eu, K., a caminho da ilha de Creta, extravio luz no vão de cercas. A caminho da nuvem, eu, morador de Villa da Concha, me’n vaig arran de l’aigua i recullo – vou rente à água e recolho – grãos de música para os dias frios e desesperados. Nos cactos, nos vinhedos e nas paredes pintadas a cal perpassam manadas de sombra. Por aqui o olho das velhas loucas até parece um lugar de siri. Escrevo: “O Jarro Sereno --- no jardim de Quf --- sonha que não cessam os oráculos. E o que poderiam revelar os oráculos?” O Deus tenta uma resposta: “Os oráculos revelam que é necessário esgrimir contra a monotonia para que o texto do Jarro Sereno – lumen naturae – nos alcance”. Eu, K., no horto, certo dia, mergulhei a cabeça oca na pipa d’água --- ia morrer afogado, o Jarro Sereno me puxou da pipa d’água”. Escrevo, depois do susto, algumas letras nupciais: “Lucana, o que eu desejo pra ti é que chovam capinzais e a Cassiopéia na tua frase. Chovam brasas no teu gelo e que os esguichos do unicórnio ágüem os cajueiros do quintal, ágüem o meu amor e a tua concha – que a água-perfumada lave teus ossos até que reste apenas essa caixinha de música e a música é tudo, bem sabes. De branca espuma coroada a onda, de barcas o mar de sal grosso, de Vazio coroado o ar e de água pura a fronte, enquanto a brisa zaranza da turmalina ao matadouro, das altas árvores à torre da pequena igreja do Carmo, dos cílios aos capinzais, a brisa por tudo passa e serenamente entra pela janela e no quarto se acalma. E que te cale a chuva no Jardim de Pedra. Durma até, durma Lucana, que eu te ressuscito com carícias na nuca. E, ao adormeceres comigo, sem que me toques, possa a árvore branca das cantatas de Bach oxigenar a tua pura fonte no pedrento, meu amor, meu labirinto de relva”. Escuto um pouco o riscado vinil de Chet Baker. Leio, antes da pequena refeição noturna, este versículo de Manoel de Barros: “Eu ouço a fonte dos tontos. Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais dentro dele”. Ontem sonhei que eu caía na cisterna abobadada de Bahr El Khabeer para escutar mel nas ostras, para escutar a fonte dos tontos, para escutar o sumo solar. Consultava o relógio da corrente: quadrado branco de fino vidro. Na cisterna havia orgias de latim e eu era virgem de mulheres. Meus olhos cobertos por vidros fumados, de aros muito grossos e talvez prateados. A cisterna mormacenta sufocava, enquanto eu rememorava os vaticínios daquela noite de runas: eu só poderia clarear o inverno sombrio, se eu mesmo fosse o inverno sombrio ou esse trecho de pedra fria que me serve de cama. O mal há, é sombra que enfraquece. O real é uma alta árvore no ouvido, o “em-constelação”. Folheio Eça: “Onde não há água, não está Deus. Chão de greda é condado do demônio”. O baal zebuh não há. Existe é o céu humano. Um cristal ou uma enguia me muda.

Amedeo Modigliani (1884-1920)


Mulher com cadeira vermelha
7 epifanias de Édouard Boubat







Tara verde: a mulher Buddha


O mantra da Tara verde
OM – TARE – TUTTARE – TURE – SOHA
OM - São as qualidades do corpo, palavra e mente dos Buddhas. É a meta.
TARE - Significa "aquela que liberta".
TUTTARE - "Que elimina todos os medos".
Os oitos medos causados pelas oito ilusões:
l. Apego (enchente).
2 - Ira (fogo).
3 - Ignorância (elefante).
4 - Inveja (serpente).
5 - Orgulho (leão).
6 - Avareza (correntes da prisão).
7 - Visões erradas (ladrões).
8 - Dúvida (fantasmas).
TURE - "Que concede todo sucesso".
SOHA - "Que as bênçãos de Tara contidas no mantra se concretizem".
7 fotos da Argélia colonial francesa
do século 19

Alary & Geiser, 1860


j. Geiser, 1860


Saharienne, 1860


Richan, 1860


Anônimo, 1865


C. Portier, 1865


Anônimo, 1870


Vincent van Gogh (1853-1890)


Cypresses, 1889

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Kenzo Awa (1890-1939)



Aqui, ao esquecer um ramo de chuva no tatami, presto minha reverência ao grande mestre Kenzo Awa.



Kenzo Awa praticando o Kyudo (O caminho do Arco)

Śūnyatā, em sânscrito, significa nulo, irreal,
não existente,
vazio.

Eugen Herrigel (1884-1955)


Eugen Herrigel praticando Kyudo (O caminho do Arco)


Fac-símile da capa inglesa de "A arte cavalheiresca do arqueiro zen," do escritor alemão Eugen Herrigel.


Flagrante do Olho de um arqueiro zen, no exato instante em que, de tanto olhar para nada, ficou com os olhos de fada.


Ponta de uma flecha do mestre Kenzo Awa (1890-1939)
Na máxima tensão, sem intenção:

Algo
dispara a flecha,
Algo acerta o alvo.

Caligrafia do Tao

O Tao que pode ser mencionado não é o verdadeiro Tao. Nomes podem ser mencionados, mas não o nome eterno. A origem do Céu e da Terra está na ausência de nomes. A Mãe de todas as coisas também não pode ser nominada. Mesmo oculto, o Tao exerce sua influência. Devemos olhar esta influência como Sempre-manifestada. E quando é manifestada, devemos olhar para outro lado. Esses dois fluem da mesma fonte. Embora tenham nomes diferentes, ambos são chamados de Mistérios. E o Mistério dos Mistérios, o Tao, é a porta de tudo o que é essencial.

Capítulo 1 do Tao Te Ching


O arqueiro zen

O pequeno inseto com asas brancas descerra a porta de aço maciço. O insignificante, o mínimo, o quantum descerram a porta maciça.

Aqui, no Templo de Sat, Eu, o arqueiro quântico, empunho o Arco, a Flecha e recito: tenho o dom de atrair o acontecimento de acasos felizes.

Diz o Buddha:

“Antes que a primeira vela

se acendesse,

a vela já estava acesa”.

Nessa hora sem sombra, ignoro tudo na arte em que sou exímio. Apenas contemplo puramente o alvo.

Algo dispara, algo acerta. Algo: a essência de uma coisa.

O mérito desse tiro, no entanto, não me pertence, pois ao permanecer esquecido de mim mesmo e de toda intenção, no estado de tensão máxima, o disparo foi realizado pelo Algo que, tal qual uma fruta madura, caiu.

Só o que escuto é um zunir que perfura o ar:

Algo dispara a flecha,

algo acerta o alvo.

Mas Algo também diz, se afinarmos a escuta:

Algo diz pára de sofrer,

diz pára de mentir,

diz pára de ter ressentimento,

diz pára de baixo-estima

e algo acerta o alvo.

O ponto em que a coisa-em-si (o Átman: o indestrutível) entra mais imediatamente no fenômeno é aquele em que a consciência (mente sem pensamentos) ilumina a Vontade.

Mente: consciência com pensamentos.

Sono, sonho, vigília.

A psique (alma), para os gregos, significa: inseto, mulher bonita, sopro.

O pequeno inseto com asas brancas descerra a porta de aço maciço. O insignificante, o mínimo, o quantum descerram a porta maciça.

Ou como dizia Paulo Leminsky: “E no interior do mais pequeno abre-se profundo a flor do espaço mais imenso”

O que é o quantum? A menor medida possível da matéria, que não pode ser subdividida em nada menor. Segundo Stephen Hawking, quantum é “a unidade indivisível em que as ondas podem ser emitidas ou absorvidas”.

O texto acima é fragmento do livro

“O arqueiro quântico,

de Fernando José Karl



Aquele que pretende ser um arqueiro zen
deve seguir a dica de Cervantes:

La lengua del alma es la pluma
Kyudoca


O processo de aprendizagem do Kyudo é longo e difícil. O treino (prática) deve sempre estar enquadrado em torno de seis elementos:

1. verdade
2. bondade
3. beleza
4. equilíbrio
5. humildade
6. perseverança


Caligrafia japonesa para o Kyudo (O caminho do Arco).

Eugen Herrigel diz a seu mestre Kenzo Awa:
– Quando tenho o arco esticado, chega um momento em que, se não disparo imediatamente a flecha, sinto que vou perder o fôlego.

Responde Kenzo Awa:
– Enquanto você tentar provocar o momento de disparar a flecha, não irá aprender a
Grande Arte. A mão que estica o arco deve abrir-se como se abre a mão de uma criança. O que atrapalha a exatidão do tiro é a vontade demasiado ativa do arqueiro que pensa que aquilo que ele não fizer, não será feito.

Kenzo Awa continua:
– Sabemos que não é bem assim. O homem sempre deve agir, mas também deve deixar que outras forças do Universo atuem em seu devido momento.

Enquanto o mestre Kenzo Awa explicava que o tiro com arco consiste em deixar partir a flecha sem a intenção de acertar, de atirar sem apontar – ou em outras palavras, ficar na máxima tensão, sem intenção –, Herrigel não pôde deixar de dizer:
– Nesse caso, o mestre deve ser capaz de atirar de olhos vendados.

Kenzo Awa pousou nele um olhar prolongado, antes de marcar um encontro para a tarde daquele mesmo dia. Já era noite quando Herrigel foi introduzido no dojo.

Kenzo Awa convidou-o primeiro para um Cha no yu – cerimônia do chá que ele próprio realizou.

Sem proferir uma palavra, Kenzo Awa preparou o chá com todo o cuidado, depois serviu-o com imensurável delicadeza. Cada um de seus gestos se desdobrava com a exatidão e a elegância que só uma severa concentração pode dar. Os dois homens mantiveram-se em silêncio para saborear convenientemente esse harmonioso ritual. Um instante de eternidade, como dizem os Japoneses.

Seguido por Herrigel, Kenzo Awa atravessou depois o dojo e foi colocar-se à frente do átrio que resguardava os alvos, colocados a 60 metros de distância.

O átrio encontrava-se mergulhado na penumbra e dos alvos apenas se conseguia descortinar os contornos. Obedecendo às instruções do mestre, Eugen Herrigel foi lá colocar um alvo, deixando, no entanto, as luzes apagadas.

Na volta, reparou que o velho arqueiro Kenzo Awa se preparava para a cerimônia do tiro com arco. Após uma saudação dirigida ao alvo invisível, o mestre deslocou-se, dando a idéia de deslizar sobre o soalho. Os seus movimentos sucediam-se com a lentidão e a fluidez de uma língua de fumo que rodopia docemente ao sabor do vento. Ergueu os braços e depois os baixou.

Kenzo Awa permaneceu imóvel, com os braços esticados, como se acompanhasse a flecha até seu destino desconhecido, como se o tiro se prolongasse numa outra dimensão. Logo a seguir, e mais uma vez, o arco e a flecha voltaram a dançar nas mãos dele. A segunda flecha silvou como a primeira e foi devorada pela noite.

Cheio de pressa e curiosidade, Eugen Herrigel foi acender as luzes para ver onde se tinham cravado as flechas. A primeira encontrava-se no centro do alvo; a segunda, mesmo ao lado, ligeiramente afastada pela precedente que tinha tocado e da qual arrancara vários centímetros de bambu.

Eugen Herrigel foi buscar o alvo e felicitou o mestre pela façanha conseguida. Mas este retorquiu:

– O mérito não me pertence. Isso acontece porque deixei agir em mim uma “coisa qualquer” (0 Algo). E foi esta “coisa qualquer” (o Algo) que permitiu às flechas se servirem do arco para se juntarem no alvo.

Do livro A arte cavalheiresca do arqueiro zen, de Eugen Herrigel.


Gravura de Yoshitoshi Taiso (1839-1892)

A delicadeza

dos grandes mestres

do desenho no Japão

http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.man-pai.com/images/Hiroshige_Fuji_Inume_b.jpg&imgrefurl=http://www.man-pai.com/Sala1/eua003.htm&h=600&w=392&sz=41&hl=pt-BR&start=4&sig2=0sKoS_T0hNuNVWu53la2ZQ&um=1&tbnid=2z7HyZWWMoq66M:&tbnh=135&tbnw=88&ei=Zh6KSLefBojeeraGzOQP&prev=/images%3Fq%3Dravina%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26client%3Dfirefox-a%26channel%3Ds%26rls%3Dorg.mozilla:pt-BR:official%26sa%3DN

O artista plástico Ando Hiroshige (1797-1858) nos apresenta o Monte Fuji tal como é visto do desfiladeiro Inume, na província de Kai, no Japão. O monte, coberto de neve sobe por uma cadeia de outras montanhas que dominam uma ravina onde flue o cristalino rio Fuefuki. Sobre a ravina, nuvens marcam a transição entre o primeiro plano e as montanhas ao fundo. Do lado direito, abaixo, três viajantes sobem a montanha. Mais acima duas figuras parecem admirar a vista sobre a ravina.
PÊRA

Se sossem do Deus, somente, as mortes,
seriam impérios aéreos, ravinas solares.

Mas as mortes são nossas,
que nos entregamos às minúcias:

crochê
moedinha
chafariz

exalamos uma pêra
do fundo mais firme do silêncio

Rita Hayworth (1918-1987)


Espiando

Rita Hayworth

no banho


L’hydre-Univers tordant son corps écaillé d’astres.

Victor Hugo

Água morna de chuveiro na pele de Rita Hayworth. Com suavidade descerro as portas do box e a flagro ensaboando as clavículas, o ventre, os pés. A nudez dela ondula sombras nos azulejos brancos. Vidros embaçados, o barulho da água atrás da cortina de plástico; as coisas essenciais, os reinos da chuva, incrustados fora da razão. Aqui, ante Rita Hayworth, devo ser um servo, e servo reverente. Ela me chama, aproxima seus lábios dos meus e nos beijamos através do plástico transparente: dura apenas um instante. Não esqueço nunca que eu tenho pelas banhistas de chuveiro uma predileção especial, ainda mais se essa banhista é Rita Hayworth. E se, após o banho, ela cobrir o nu com uma toalha, ai dela, eu viro Calígula, o Terrível, ordeno a meus exércitos que arranquem a toalha enrolada em seu corpo. Que a toalha suma! E que reste límpida a nudez de Rita Hayworth, assim deitada na cama, em estado de óbvia distração.


Paul Cezanne (1839-1906)


Ponte em Maincy, 1876

Claude Monet (1840-1926)



Chemin Dans les Bles a Pourville, 1882
7 neves de Lisa M. Robinson

Onde existe o maior perigo
cresce também o que salva.



Hölderlin

Sou nada, e entanto agora
Eis-me centro infinito
Do círculo infinito
De mar e céus afora.
--- Estou onde está Deus.



Manuel Bandeira

Porque eu havia lido em algum lugar
que as palavras eram conchas de clamores antigos.



Manoel de Barros

Um verso, mesmo sem sentido algum, pode ser bonito, desde que as palavras estejam harmoniosamente combinadas.


Carlos Drummond de Andrade

Como conhecer as coisas senão sendo-as?



Jorge de Lima

Ah corressem Nilo e Niágara
através de nós, então gritaríamos
ainda mais sedentos!



Iwan Goll

Angst... stirb im Gestein.

Medo... morra nas pedras.



Georg Trakl

quarta-feira, 23 de julho de 2008



Túmulo do Rei Davi
Domine
“Miserere mei, Domine, quonian infirmus sum; sana me
Domine, quoniam conturbata sunt ossa mea”.
(Rei Davi)


Dedico este poema à Mié


Sana me de formas turvas, Domine.
Sana me da miséria tumular.
Sana me do ríctus da amargura.
Sana me do conturbado vendaval de Carrascozza.
Sana me de não fazer ablução com água de estrela.
Sana me de crótalos marinhos envenenados.
Sana me de cadáveres dragados nos pauis.
Sana me com os Santos Óleos e o azeite dos doentes.
Sana me de fétidas palavras.
Sana me.
Sana me com a força da doçura.
Sana me com a força da poesia.
Sana me com a força da música.
Sana me com a força das mulheres e das crianças.

Que língua, ossos e olhos sejam para sempre.

Magnólia
Conferir o blog
pra lá de belo da Mié


http://mi-roads.blogspot.com/

Busto de Virgílio
Luctantes Ventos Tempestates que Sonoras

No mais mineral das profundas prosas altas,
.......... onde a viola de chuva se esconde,
.......... lá onde as piscinas ondulam tempestuosas,
.......... quando o escarcéu das águas se avulta,
.......... lá a voz selvagem e as iguanas sedentas,
.......... lá, na voz, se aclara a palavra nunca vista
.......... e a obsedante garoa rega a pedra da elegia.
.......... No alto-mar de transparente massa cristalina,
.......... quanto mais ao alto-mar de silêncio perto,
.......... mais a voz vai aclarando,
.......... se antiga é a alma que se vislumbra,
.......... assim das profundas mostra claro e radiante
...................... o mineral das prosas altas
...................... que serena o que, nas sedentas, há de árido.

Anon, 1845



Fotografia post mortem de mulher desconhecida.
A cura é escutar,
na mulher morta,
a pulsão de vida.

A cura é escutar,
na xícara,
a pulsão de vida.

A cura é escutar,
no vento,
a pulsão de vida.

A cura é escutar
no salmão escuro,
a pulsão de vida.

A cura é escutar,
no símbolo,
a pulsão de vida.

Barnaby Hall