domingo, 9 de dezembro de 2007

Chet Baker


AS CARPAS NA CASA DE CHÁ

A Casa de Chá que tenho, aqui na cidade de Kyoto, é muito freqüentada. Só fecha na segunda-feira; aproveito a folga e o fato de residir na própria Casa de Chá para escutar, deitado em minha cama, Chet Baker num vinil riscado.

Acendo o abajur, juntas e confusas, as carpas no grande aquário no canto do meu quarto. Tantas vezes, tantas, como agora, eu as pego me olhando, as carpas devassando o que em mim tem sido pesada âncora de ferro. E o que pesa tanto na âncora? Não conseguir responder à seguinte pergunta:

– Se a vela já estava acesa antes que a primeira vela se acendesse, onde está o Buddah neste exato momento?

– Se a vela já estava acesa antes de estar acesa, então a carpa já estava molhada antes que a água a molhasse. Antes que houvesse cortina e vento, a cortina ondulava ao vento. Antes que houvesse os olhos, olhos já viam carpas, cortinas, aquário e viam a vela acesa antes de estar acesa.

E que fogo é este que queima sem queimar? O Buddah, neste momento, está dançando em torno de um fícus: tem vezes é invisível o Buddah, que celebra as Bodas de Saïs em torno do fícus; outras vezes é uma folha o Buddah e dá cinco voltas em torno do fícus. O vento não deixa a folha cair no chão, mas faz com que ela adentre a capela de Santa Ana e paire na água da pia batismal.

– Mas que lugar é este onde a vela está acesa antes de estar acesa e a carpa molhada antes de estar molhada?

– Este lugar é quando eu contemplo pura e serenamente os objetos.

Auguste Lesouëf


AS JARRAS DE ELISA

Elisa nunca fica de costas para as jarras cheias d’água na sala e, à mesa, talheres, prato, copo e o salmão grelhado. Ao canto da longa mesa, espiando o céu pela vidraça, Elisa escuta o silêncio, atenta ao que nas coisas está sempre escutando! Ainda lembro dela arrancar das jarras o vidro, contudo, sem vidro, não há jarras.

Ela paira nesta sala de jantar e lê as Breves memórias de Alexandros Apolonios. As orações que Elisa faz não purificam as árvores lá fora. O amor é o menino em chamas no tombadilho, é a pata esmagada do cão por um trem, sobretudo, o amor conduz à elegância e faz com que a seriedade fúnebre suma na curva da açucena ou toque um noturno em sua própria coluna vertebral.

Nessa manhã antiga, à sombra de árvores seculares, e também à sombra das jeunes filles proustianas, eu, definitivamente, decidi que não posso andar por aí com as jarras cheias d’água de Elisa. Mas posso consentir que alguém queira escutar o silêncio que Elisa escuta. Se aqui eu estivesse com as jarras, uma em cada ombro, o máximo cuidado teria para que não caíssem, as jarras, nas pedras. Sejamos reverentes à verdade sóbria e pura: nenhum de nós nunca chegou a existir para que houvesse alguma possibilidade de paraíso após o último suspiro.

Tão absolutas as jarras cheias d’água de Elisa. Mas tão maciçamente seca e pétrea a caveira. Tão jarras d’água as jarras de Elisa. Só com elas Elisa pode ver a estrela.
Imersa no vento, onde respira, Elisa aprende que a vida é vã como a sombra que passa, e que as jarras são jarras, mais que sombras, porque jarras fazem sombra e nunca sombras fazem jarras.

Matisse


CASINO DE LOS TOROS

No dia seguinte estava Juan ansioso por ter ao pé de si a mais bela espanhola do Casino de los Toros. Convidou o vento a ir com ele ao bairro de Saavedra, à noite, para chupar umas ancas, beber tequila, comer flores.

Pegam o táxi e, no caminho, percebem – Juan e o vento – que árvores passam por eles, desesperadas e, agora, se estão bem aqui, diante do Casino de los Toros, é porque não ficaram em casa e já solicitaram ao garçom que os apresente às mulheres.

Juan não aceita a loura, mas aceitou a negra, uma verdadeira princesa da Babilônia. Enquanto isso o vento, um pouco mais libertino, bebe umas ancas, come tequila, chupa umas flores.

John Paul Caponigro


Há esse princípio indestrutível:
a um oceano nunca se destroça.

E quando o céu é alto eu digo:
eis a respiração do homem.

Miró


Bill Jay


A CASA FECHADA

Na sala de uma casa fechada sofre terrivelmente o abandonado. Bem me recordo da noite em que o visitei na vila de Santa Chuva, depois que ele voltou de uma orgia de ervas e líqüidos. Era sábado de inverno.

Ele não foi jantar no Solar dos Grüningen, onde habitualmente jantava também a divina bandoleira. Preferiu ficar ali prostrado, num abandono de chuva nas calhas, de uva na língua.

Creio mesmo que no Solar dos Grüningen a divina bandoleira esteja, nesse instante, sob uma pensativa árvore e contempla, naquele retiro de sombra, a janela do meu quarto que abre para o jardim. Eu vou reverenciar a divina bandoleira, antes a observo deitada na relva, nua ao vento.

Nunca vi face humana mais serena.

Julia Margaret Cameron, 1870


A TEMPESTADE

A tempestade lá fora aviva tudo o que se move: árvores vergadas ao chão.

Schopenhauer ancora a barca Nautikon a um tronco de carvalho e retorna ao Hotel Sunset Boulevard, senta no parapeito do terraço que dá para o mar grosso e franze a testa. O médico lhe deu a notícia dolorosa: só dois dias de vida. Lythia, abalada com o câncer do marido, deita sob o guarda-sol. Ela, após alguns minutos, lembra a Schopenhauer que não somos nada, nunca fomos nada, e que, apesar disto, podemos guardar na memória todos os jarros de luz que o sol esqueceu à porta dos amantes.

Schopenhauer retorna à varanda desse hotel, à visão do mar. Esqueceu o costume de fazer discursos e, afastando com o gesto a mosca, volta a encarar sem esforço as ondas de salgada branca espuma, as ondas que se destroçam na pedra feito louças. Schopenhauer medita e decide: vai dar um passeio pelo bosque vazio nos arredores da Pacific Coast Highway e assassinar, com soco no ouvido, uma freira carmelita.

No meio do bosque vazio, nessa pacata Vila de Torre Escura, Schopenhauer encontra a freira. Quando ia desferir o soco, ela reage:
– Agora não; você está muito cansado –, e crava um peixe nos ombros de Schopenhauer; um peixe que se debate de forma violenta.
– Você conhece este peixe? – pergunta a carmelita.

Schopenhauer responde que não. O arpão de um raio acerta a nuca de Schopenhauer, que não morre, antes mistura vocábulos próprios e alheios, paisagens de toda sorte, a tal ponto que ele pergunta a si mesmo como é que um homem, que ia morrer dali a dois dias, podia tratar tão friamente uma freira carmelita, a ponto de querer assassiná-la com soco no ouvido?

Sim, Schopenhauer retorna ao Hotel e encontra Lythia que, ainda sob o guarda-sol, folheia o Livro dos Mortos — o Bardo Todol — que diz que, alguns dias após a morte, tudo em nós vira vento e a primeira coisa que vemos é um cavalo, também de vento, e Lythia percebe que o Schopenhauer que se aproxima não conseguiu matar a freira carmelita e ainda trouxe um peixe cravado nos ombros, um peixe que não pára de se mexer.

Schopenhauer pergunta:
— Quanto tempo ficaste ao sol hoje, Lythia?
Lythia responde, espreguiçando-se:
— Há milênios, milênios.

Uma sombra desce ao rosto de Schopenhauer sempre que recorda o prognóstico do médico que lhe disse:
— Só dois dias de vida, meu senhor, só dois dias.