segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Kami: vento, em japonês

A DEUSA SAHO

Nem mesmo seu nome é conhecido:
flores de capim
à beira de um riacho.

Chiun


A deusa Saho sonha com Sôgi.
Sôgi sonha com a deusa Sahô.

Água os desnuda:
a salgada branca espuma,
nudez vai e volta.



CHA NO YÚ
(O objetivo da cerimônia do chá
é purificar seis sentidos)

Kakemono na sala de chá:
flores de cerejeira no vaso de barro.

Água ferve na chaleira, escorre da folha de bambu.
Audição se purifica.

Quietas
as linhas da mão de mestre Rikiú.

Rodney Smith


Oschiri


Cortona


MEMÓRIA DO AGUAÇAL

Eu sei que não existe o Rei que me enviou.
Fernando Pessoa


Oculto na ramagem do que rascunho,
respiro metade xamã, metade pesadelo.
Rascunho quintal para garças e mar,
enquanto o reino nublado, na vigília, se desfolha.
O Buddha que não existe, quando escuta o aguaçal,
recebe o pensamento do aguaçal.
Depois vai arrancando de muros rentes ao palácio
mil sóis ali avoantes.
O que eu sei dos manuscritos do tímpano
é que a matéria imaterial faz refém a matéria.
No papiro de Stephanos – hermetista do século 7 –
a palavra é uma lasca da voz do Buddha que não existe,
inscrita em aguaçal que fia e tece:
a fala é então sua luz e singra, íntima do vazio,
à bordo da barca Nautikon.

TERMAS MARINHAS

Vinham ciprestes ao silêncio.
A banhista ciciava no tímpano da carpa,
carpa luminosa no leito da onda.
Em torno havia um mar cativo de espumas.

Vinham calígrafos ao silêncio.
Naquilo âncora o mar molhava.
A banhista velava o incensário de ouro e fogo,
escorava a língua no apuro do açude.

O céu a serenava.
Antes que a primeira carpa se molhasse,
a carpa já estava molhada.

A banhista imersa
no vapor oloroso das termas marinhas:
sua alma uns abetos remoçando n’água.

Andre Kertesz



ENROLO OS MEUS CIGARROS COM AS FOLHAS FINAS

Se eu soubesse que a chuva só molhava,
teria ficado mais tempo exposto a ela.

Álvaro de Souza


Enrolo os meus cigarros com as folhas finas
de um pequeno livro de mortalhas.
Composição para ouvido:
eu preciso aprender a empurrar a chuva

até a vidraça onde a chuva quer molhar.
Escuto a nostalgia que a chuva
insiste em esquecer junto à porta.
Mais molhada que o mar,

a chuva desfaz o meu cigarro de folhas finas,
desfaz meus cabelos, minha cabeça,
a chuva só deixa intacto o gelo do coração

que teu sopro abrasaria.
A nuvem ia recitar uma ode,
mas deu branco na nuvem.

Carl Friedrich Gauss


O PEIXE SEM ESCAMAS

Também a luz em si mesma se perde.
Octavio Paz

A curva irônica de Gauss:
relâmpagos de puro cristal aclaram
os dois jardins da Babilônia.
Um jardim é Quf: capacidade de escutar
a santidade de nossa natureza.
Outro jardim é criatura que ondula cristais sonoros:
o mar grego okeanós.
No ano 1004, em algum palácio do oriente,
dentro do quarto junto do pomar,
o califa al-Hakim proibiu a venda
do peixe sem escamas
e grafitou nos muros escalavrados
um estudo sobre ótica.
O califa al-Hakim convidou para a corte
o astrônomo al-Haytham que seguiu o rastro
da Teoria da Intromissão, de Aristóteles,
--- segundo a qual a qualidade do que vemos
penetra surdamente no olho por meio do ar.

Cortona


CANTILENA MANSA PARA ATRAIR
O JARDIM DE NAFZAUÍ
(Da importância da leitura)

Todo signo sozinho parece morto.
O que lhe dá vida? No uso, ele vive.
Tem então a viva respiração em si?
– Ou o uso é sua respiração?

Wittgenstein


A imagem aí: o jardim de Nafzauí (*).
Uso a imagem do jardim para respirar.
Vem, anjo, prender asa na minha porta,
depois me deixe vazio de negrumes,

para que a ilusão encontre sua orquídea
na ribanceira geométrica do cérebro.
O jardim de Nafzauí – sozinho – imita a morte.
O que o faria ressuscitar dos escombros?

Tento traduzir com mímicas as delícias do jardim.
Não sendo capaz, abro o guarda-sol para que a ninfa
sopre no caderno de linho branco

o que a mantém viva entre as árvores.
Para consolo da ninfa e do jardim algo diz:
quem lê também escreve sob o guarda-sol.

(* ) O jardim de Nafzauí localiza-se no centro da cidade de Bizâncio.

Cartier Bresson


CASAMENTO DE DOIS CEGOS
NUMA SAUNA TURCA
AOS ACORDES DE VIOLA DE GAMBA


Só as nuvens são eternas.
Mário Quintana

Eram cegos, rememoravam dinastias de vozes.
Cegos a quase tudo, só viam jarro com azevém.
Não viam ímãs aquáticos de Sirius
nem o gongo virginal que soprava fogo azul
no gelo dos olhos que, nublados,
apenas enxergavam tudo o que,
no jarro com azevém,
jarro com azevém que alava-se
no céu encordoado a nuvens.
Apenas o sabor da sede os consumia.
Por isto, aos acordes da viola de gamba,
entrelaçaram-se, às cinco em ponto da tarde,
na piscina natural da sauna turca.
Ninguém estava ali para coroá-los.
De presente receberam o jarro com azevém.

A casa de Alfred Hitchcock


MAS O POETA MORA A SÓS NUMA CASA DE ÁGUA
(De um poema de Hilda Hilst)

Um sol de gelo paira a Casa de Água:
o que eu adoro é ninfa imaterial,
agreste brancura da flor de mandacaru,
dançar na Casa de Água de Alfred Hitchcock
ou sonhar o pescoço de Vishnu,
depois rabiscar águas com barcas brancas.

O sonho humano se abrupta nos escolhos.

Alfred Hitchcock lambe, com língua de vaca,
o sal do megafone.

No seu túmulo, grafado em pedra, inscreve-se:
eu fui uma Casa de Água.
Anônimo

BOTECO GALLO DEL VIENTO

Eu vim a esse boteco Gallo del Viento
com os três andaluzes tocadores de viola,
com a gueisha Wang Li
que massageia minha nuca nas horas vagas,
enquanto mastigo hóstias que surrupiei
da pequena Capela do Carmo.

Eu vim a esse boteco Gallo del Viento
e se Vossas Senhorias ainda não vislumbraram
os andaluzes tocadores de viola e a gueisha Wang Li,
é porque eles cultuam a timidez,
rigorosamente invisíveis.



Audrey Hepburn