quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Anônimo



Na floricultura,
o moço viu a moça
e

papoula

Cartier Bresson


De tanto olhar para nada,
ficaste com os olhos de fada.

Magritte


MINA D’ÁGUA

Sou a sombra da nuvem na pedra,
enquanto arde a rosa na escarpa de mim.
Lavo-me da voz, de qualquer imagem.
À beira da escarpa escuto:

sou a sombra do sol na pedra.
Enquanto chove na rosa,
caio nas águas ribeirinhas que sou.
Teu corpo, meu amor, nas alturas do céu,

clareia as estrelas suspensas.
No repuxo de uma água escondida
– que de teu colo emana furtiva –

esqueço minha cabeça,
seca de tantos dias sem te ver,
cabeça com o fóssil de tua voz.

Regina Gallo


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Cartier Bresson


O SILÊNCIO DAS TIGELAS DE ARROZ

Em lugar de olhos, dois nuncas.
A noite unida à noite essencial.
Fisgo, em lugar da morte, uma pedra clara
e da cisterna sombria acordo alado:

sem amada, capinzal, mãe, pedra ou labirinto.
Em lugar de respirar, a música me vela.
A eternidade é o silêncio das tigelas de arroz.
Em lugar de estar vivo eu sou o que fuma,

enlouquecido por discordar do roteiro.
É desconcertante morrer sem acariciar
o pomo dourado da própria voz,

e a lenda da pele, que acende com o toque dos dedos.
É sempre absurdo não ter direito a um nome,
a um quintal com pequenos pássaros intensos.

A TRUTA

Alguns apodrecem, outros não.
Embaixo do túmulo ficam os de órbitas frias,
que não entenderam o salto da truta no rio.
Acima do túmulo, entre silêncios vivos,

caminham e respiram aqueles que doeram
durante dias na cama um coração de pássaro,
humilde como água de arroio,
e o gramofone – com a voz rouca do tempo –

conta um segredo: tudo é frágil, desaparece.
E o primeiro verso continua a pronunciar
o Horror que diz, sim, alguns apodrecem, outros não:

não apodrecem se a truta respira,
não na superfície, mas no fundo,
entre pedra e limo e peixe e lama e calcário.
Taj Mahal

E todos os jardins suspensos do fundo mar se curvaram quando ela passou. Se ela te abraça é uma semana de barcos. Pertence a quem não marca seu céu. Onde não enraíza espelho, ali ela respira. Sua essência marinha não erra ponta de cardume. Abana o azul com leque. Eu sonho, Ana, que tu dormes enquanto chove lá fora, chove uma fina chuva em teu sonho, e tu sonhas que eu te entrego uma flor.

Fomos feitos para escutar música; para escutar estrelas de pura água; para escutar o silêncio do coração – coração do sol. Nunca decifres, nos búzios, o sétimo céu. Quero flagrá-lo aqui do terraço com Olho védico, com a voz, com o desejo esvaindo águas. Imersa nas águas tu és, bem-amada, em meio às narcejas, um Deus escondido. De tal modo serenada, que o sopro de teus olhos desarruma oceanias. Te ofendo com apitos, meu Deus, com pratos de plantas, para que aprendas a inutilidade do céu. Há mais pensamentos que coisas. Fico miosótis para o fim, desaprendo a ira para pra te convencer que a morte não existe: essa pirataria sepulcral é só um jeito da gente brincar de sumiço. Te convenço que aqui no centro se unge com boana. Balanço cabeleira só pra ofender meu Deus. Com cachaça feroz eu espicaço tua alma, parto em duas tua espinha dorsal e te espanco até que caias numa cama de suave pena de cisne – os travesseiros de chuva serão apenas testemunhas secretas do quanto minha língua de fogo sabe o sabor de tua pele branca de neve – eu como a maçã da branca de neve, eu chupo a pequena uva do clítoris da branca de neve, eu subo na mais alta árvore e me atiro nos braços da chuva. Ante o mar azulado, na cadeira de praia, ela dormindo sonha com o príncipe da neblina que se aproxima de sua orelha esquece ali música verdejante.

Certa mulher, mas não esta ou aquela, porque me refiro à que vive na ilha do Arvoredo – nas noites perigosas – é música atravessando o muro. Tu de branco, Ana, mais bela que o Taj Mahal se é céu noturno. A escrita incita o linho. A poesia é quando estamos andando sobre o dorso de peixes dourados e alguém nos entrega um livro justo na página 61 onde está escrito que não há palavra de adeus para os flocos de neve que se fundem à brancura do campo.

As ervas do jardim. A voz rasga o céu, a raga indiana rega as ervas do jardim – pairo acima de salsos pendentes. Sob o laranjal, sob o vento, sob o sol, Ana é um arpejo. Os dedos acordam laranjas: uma sombra pesa no ar: − é o pássaro negro! − é o pássaro negro! Diz Ana: “Que o pássaro negro me leve, mas não já”, depois abraça o laranjal. De longe, assim abraçados, nuvens de borboletas. Martelar a ponta branca do punhal, afinar sobre a bigorna a lâmina de prata. As batidas ressoam na clavícula, e parece que Joseph Peyré quer sagrar o tédio. Brutas marteladas, suas únicas armas, afiam o punhal que vai descascar a laranja.

A mãe morta é bela porque é a delicadeza se dissolvendo. Com machado de ferro quebra-se a pedra. Clareza fixa e rústica, a pedra, se cortada em duas, são duas pedras mais belas que a mãe morta, porque pedras não morrem, mantém a delicadeza. Na ponta de sete talos de erva, na vasilha de endurecer o ferro: a imagem da pedra. Por vezes se a imagem se oculta, faz sonhar ainda mais. Nunca se aprende uma imagem e com sete talos de erva curo-me. Na vasilha de endurecer o ferro, um desenho mínimo de rios. Com ele salvo da morte as imagens.

Olho atentamente as barbatanas tuas, peixe, que circunsoam na escuridão do pélago. Sou azul e peixe no milésimo de segundo em que olho atentamente as guelras do peixe que sobe pelo silêncio desse espelho que captura o silêncio de uma pedra branca, às vezes invisível, e que os anjos deram o nome de segredo. Eu não existo, Senhor, aprofundado que estou em teu oboé. Em teu aroma de cântaros eu respiro, Senhor, com ossos delicados criados por Ti. E me findas sem que eu saiba das três belas de Edo. Quem eram? Quem não eram? Voz mansa, Chateau Duvalier, varandas, redes, que mais para o amor? Eu não existo e as minhas palavras tornam aéreo o chão.

O sol, na manhã lavada, é a sombra do Deus. Ficamos ali vendo as mulheres mergulharem no oceano para esquecer, enquanto nos teus olhos li que a morte é a única sombra: manhã com céu a incendeia. Há no céu imensas curvas de cristal, e na cama os esqualos. Faltasse água, morreriam à luz seca do meio-dia. Por isso fomos ao oceano com baldes de alumínio caçar águas. Enquanto eu enlaço quatro noites, o peixe da sombra azula a sombra e, à sombra do peixe, torres de igreja bizantina. Numa das torres reluzem os abismos e o peixe sobe para o céu, por causa da palavra céu, por causa da palavra peixe.

Arco noturno de água, aonde vais com a fronte consumida? Para o sono dos ventos num barco de madeira, vou buscando o rio à beira-mar, próximo de restingas. Aroma, rastro e junco. Mar, aonde vais? Para os cristais e as árvores. Rio acima vou buscando a palavra sagrada, fonte onde descansar a ressurreição perdida. Descansar sem sombras no coração. Choupo, e tu, que farás? Receber da rosa o perfume branco da claridade que se esvaziou. Não dizer mais nada. Apenas arrepiar-me! A estrela molha a penumbra. O que desejo, o que não desejo, pelo rio e pelo mar? No deserto o rio oculto nos teus braços. Quatro pássaros sem rumo no alto choupo estão.

Jane Mansfield


Botero


Cartier Bresson


O pesadelo de K.: “Nunca estive aqui. Respiro ao modo antigo, e a matéria clara de uma Cassiopéia, que move cristal de rocha e músculo, turva-me ainda mais do que o Deus da respiração. Manah, em sânscrito: ‘mente’. O vocábulo santo – Deus – igualmente do sânscrito, é grafado D’jeus e significa ‘lua clara no céu: mente silenciosa, sem sonhar’. No sono já sei que o sonho é uma astúcia da vigília. No pesadelo do sono estou no calabouço, vocifero, estou no calabouço, amarrado a um tronco e à espera do interrogatório noturno. Uma nova estrela ventila as vértebras e nelas eu teclo uns acordes da Sagração da Primavera, de Stravinski. Lá, acima dos claustros altos e românicos do castelo de pedra, os ventos nunca dormem. Aqui, no calabouço, a alma cativa, chagada toda, está em carne viva. Neste lugar de lodo amor não há e o peixe de escuro dorso pétreo dilacera, com seus dois aguçados dentes de morsa, com seus dois graúdos dentes de morsa o calafrio escalavra a alma sensível. Calabouço, onde eu dormia num catre rude, mas limpo. Ali me curvei ao vasto Vazio, tendo nas mãos caules frágeis. Naquela noite em que enfiaram homens, mulheres e crianças nas câmaras de gás, naquela noite eu atravessei o pátio gelado do calabouço e, à sombra noturna de árvores, encontrei o Vazio sentado num dos bancos rociados pela neblina. O Vazio com a cabeça enterrada entre as mãos”.

Cartier Bresson


A serenidade de um verso latino escrito num vaso raro ou no quadrado vivo de um quinteto de Brahms que, já nos primeiros acordes, esboça um quarto em alto-mar. K. escuta lundus e batuques africanos no radinho de pilha. Escuta Brahms, como já disse, e também o barulho da geladeira com pingüim por cima. Necessário escavar, escavar com atenção de arqueiro cavalheiresco o minério dos livros. Se, assim arqueiros, ficarmos em estado de óbvia distração, acertamos o centro do alvo mesmo que não haja arco e flecha, mãos e alvo. Necessário fugir entre árvores agarrado ao pescoço dos antílopes, contudo mais necessário, ainda, é abraçar árvores e deitar nas folhas das folhas de relva. Você não entende o minério mas a mente sabe do silêncio. A mente nasceu de um silêncio de Buddah. Antes que o primeiro Buddah sorrisse, o Buddah já estava sorrindo. Não entende a fonte e ela escorre invisível em você. Tudo aqui é simples. Buddah é simples. Sem pressa, observo a brancura dos linhos domésticos e, lá no fundo do jardim abandonado, a fragilidade das árvores providas de espinhos. No casarão colonial angst... stirb im Gestein (o medo... morre nas pedras), e K., se escuta orvalho no olho do peixe, também cuida da água do aquário e da voz que ecoa no bosque. Orvalho: aquilo que refrigera e consola. Suntuosos vendavais circundam o casarão antigo, que está na rua do Corisco, uma construção de grade de pau, com telhados muito imbricados e largos beirais. O rádio alto e o homem taciturno que nele se abandona: K. Arvoredos abandonam sombras indecisas numa das grandes paredes brancas do casarão. O sol marinho dá nas calhas e nas venezianas, nas louças, na moça que anda de bicicleta. K. desce os degraus de pedras soltas, nos galhos do salgueiro vai deixando blusa, calça, sapatos, chapéu, cachimbo num coral de sereias. Vai recitando, em latim arcaico, um mantra marinho para Virgílio (as palavras ele as fisga aleatoriamente de um dicionário): Tot praestat eu componere fluctus. Et vastos volvunt ad littora fluctus. Mainoménon ponticas só et vastos. Akúon fluctus rózion polijea rictus. Akúon queria par de zalássi. Thálassas thálassas akúon fluctus. Polijea poisson akúon rozíon. Fluctus tot praestat et vastos. Volvunt fluctus um componere. Et vastos rictus fluctus. Akúon acqua akúon volvunt. Fluctus poisson copo fluctus. Et vastos volvunt ad littora fluctus. Tot praestat componere mainoménon d’água. O casarão colonial: esse espaçoso confim de ar silvestre, essa nuvem arquitetônica entrelaçada ao claro vento. Nesse casarão K. pode tudo: esquecer palavras, não procurar a verdade nem afastar as ilusões. Aqui K. não é K., nada precisa fazer, entanto move-se quando o casarão molha-se de asas. Vai quebrar, antes que se aproxime a noite, o vaso mais raro. Inteiro, o vaso serve a alguém. Quebrado, serve apenas aos deuses.