domingo, 11 de novembro de 2007

Hitler nervosinha

Hitler quer fazer coisas terríveis com quem
mexeu em seu bigode


Acesse já!


http://www.youtube.com/watch?v=Pamy_kM-A2A

Hitler e os biscoitos

Ataque de nervos do Fuhrer



Acesse já!

Magritte


Juliette Binoche


Harrison


O LIRISMO DINÂMICO DO FERREIRO

Martelar a ponta branca do punhal,
afinar sobre a bigorna a lâmina de prata.

As batidas ressoam na clavícula,
e parece que Joseph Peyré quer sagrar o tédio.

Brutas marteladas, suas únicas armas,
afiam o punhal que vai descascar a laranja.

Man Ray


A MULHER QUE SE MOLHAVA DEMAIS NA CHUVA

Ela se molhava na chuva do passado, porque certamente o sábio tinha razão quando pronunciou que nunca está chovendo, sempre já choveu.

Se ela soubesse que a chuva só molhava, ficaria mais tempo na chuva.

Dois domingos depois retornei à sua casa e ela continuava molhada com a chuva do passado. Me contou que teve um sonho grotesco: sonhou que, por ordem de Himmler, dois homens da Gestapo penetraram no apartamento do general Schleicher, em Berlim. A filha dele, que abriu a porta, foi fuzilada na hora. Os homens da Gestapo passaram por cima de seu cadáver e, quando Schleicher pegou na pistola, foi fuzilado junto com sua mulher.

As chuvas do passado estavam todas naquele canto da sala, bem ali, ó, atrás do vaso de samambaia. Ela se molhava nessas chuvas, enquanto abria a lata de sardinha.



Inclinado de leve para a deusa de água, o skinhead com roupas de Popeye traz mãos que abandonam no abismo todo um ritual de argúcias. Murmura, cáustico para si mesmo: “Sou, então, skinhead com roupas de Popeye? Os de minha rua trazem-me aqui para ser julgado por esse Fariseu ressoando como tambor! Que fiz eu? Onde é o meu reino?”

O Fariseu, desatento ao esgoto que lhe suja a alma, perfila-se junto ao sólio de mármore e repete, tonitroante, uns versículos na antiga língua dos livros apodrecidos. Como o skinhead permanece silencioso, o Fariseu vocifera no tímpano dele uma brasa do inferno.

Então Jesus, o sereno, que estava perto do poço, se aproxima, estaca severo diante do Fariseu e, para que ele ouça, recita uma linha de Ovídio: “Se os bichos pudessem falar, ficariam calados”. A voz de Jesus é clara, segura, quando pronuncia a sagrada verdade:
– O reino do skinhead com roupas de Popeye não é daqui!

Com sombrio murmúrio todos recuam, deixando o Fariseu e Jesus, a sós, no limiar do átrio escuro. Não anda sobre água o Jesus nem multiplica pedras em peixes nem água em vinho, mas, para pasmo da turba que se aglomera ruidosa, ele ordena ao Fariseu que este seja transformado numa chuva fina sobre o rio Jordão.

O Fariseu não aceita que o transfigurem em chuva:
– Por que não me transmutas na conta de orvalho que estremece na ponta de uma folha?

Com os longos cabelos caindo sobre os ombros, Jesus desiste de transformar o Fariseu em chuva. Opta por algo mais leve. A turba, amontoada ao canto do átrio, aguarda o veredito. Jesus convoca as forças angélicas e confirma a sentença:– A partir de agora tu não és mais um Fariseu, mas um peixe com sede e, para esta sede, não há saída.

Botero


Magritte



Lapidem esse aquam fontis vivi.
A pedra é uma fonte de água viva.

Andre Kertesz


JARDIM DE PEDRA

Eu escrevo o dia inteiro, cá fora, junto ao pequeno pavilhão de estilo oriental e sob a árvore daquela frase; árvore que finca raízes no calcário friável composto de sílica e argila. Não esfrego serpente nem ostra na cara. Não falo grego e siríaco, mas o silêncio escuta o movimento hierático de minha clara língua.

Eu, K., a caminho da ilha de Creta, extravio luz no vão de cercas. A caminho da nuvem, eu, morador de Villa da Concha, me’n vaig arran de l’aigua i recullo – vou rente à água e recolho – grãos de música para os dias frios e desesperados. Nos cactos, nos vinhedos e nas paredes pintadas a cal, perpassam manadas de sombra. Por aqui o olho das velhas loucas até parece um lugar de siri.

Escrevo: “O Jarro Sereno --- no jardim de Quf --- sonha que não cessam os oráculos. E o que poderiam revelar os oráculos?” O Deus tenta uma resposta: “Os oráculos revelam que é necessário esgrimir contra a monotonia para que o texto do Jarro Sereno – lumen naturae – nos alcance”. Eu, K., no horto, certo dia, mergulhei a cabeça oca na pipa d’água --- ia morrer afogado, o Jarro Sereno me puxou da pipa d’água”.

Escrevo, depois do susto, algumas letras nupciais: “Lucana, o que eu desejo pra ti é que chovam capinzais e a Cassiopéia na tua frase. Chovam brasas no teu gelo e que os esguichos do unicórnio ágüem os cajueiros do quintal, ágüem o meu amor e a tua concha – que a água-perfumada lave teus ossos até que reste apenas essa caixinha de música e a música é tudo, bem sabes. De branca espuma coroada a onda, de barcas o mar de sal grosso, de Vazio coroado o ar e de água pura a fronte, enquanto a brisa zaranza da turmalina ao matadouro, das altas árvores à torre da pequena igreja do Carmo, dos cílios aos capinzais, a brisa por tudo passa e serenamente entra pela janela e no quarto se acalma. E que te cale a chuva no Jardim de Pedra.

Durma até, durma Lucana, que eu te ressuscito com carícias na nuca. E, ao adormeceres comigo, sem que me toques, possa a árvore branca das cantatas de Bach oxigenar a tua pura fonte no pedrento, meu amor, meu labirinto de relva”. Escuto um pouco o riscado vinil de Chet Baker.

Leio, antes da pequena refeição noturna, este versículo de Manoel de Barros: “Eu ouço a fonte dos tontos. Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais dentro dele”. Ontem sonhei que eu caía na cisterna abobadada de Bahr El Khabeer para escutar mel nas ostras, para escutar a fonte dos tontos, para escutar o sumo solar. Consultava o relógio da corrente: quadrado branco de fino vidro. Na cisterna havia orgias de latim e eu era virgem de mulheres. Meus olhos cobertos por vidros fumados, de aros muito grossos e talvez prateados.

A cisterna mormacenta sufocava, enquanto eu rememorava os vaticínios daquela noite de runas: eu só poderia clarear o inverno sombrio, se eu mesmo fosse o inverno sombrio ou esse trecho de pedra fria que me serve de cama. O mal há, é sombra que enfraquece. O real é uma alta árvore no ouvido, o “em-constelação”. Folheio Eça: “Onde não há água, não está Deus. Chão de greda é condado do demônio”. O baal zebuh não há. Existe é o céu humano. Um cristal ou uma enguia me muda.


ÚNICO DESEJO



A grande águia de prata trouxe transatlânticos

falésias com juncais

ouro da Pérsia

cântaro com selo de Salomão

nada quis

porque só desejo que minha filha

– Shânkara Lis –

respire

para

sempre


Pensar em Deus é desobedecer a Deus.
Fernando Pessoa

Gustave Doré (1832-1883)

A BANHISTA E O RINOCERONTE

Uma névoa rósea e palpitante de ninfas
– nereidas, dríadas, oréadas, napéias coleantes, oceânides melodiosas.

Júlio Dantas


Eu sei que a banhista não existe,
mas entre duas ondas do mar a banhista mergulha
e a respiração dela – napéia coleante – se a imagino,
existe junto do pomar e do rinoceronte.

O sono íntimo da talássica nereida me doura.
Sob um muro de Cnossos,
as duas ondas do mar nunca secam,
ressuscitam molhadas no sonho da banhista.

Ossos do rinoceronte secam,
não ressuscitam nunca mais,
como nunca mais ressuscitam o fel e o urinol.

Assim os arcanjos nunca extraviam suas blusas d’água,
a banhista – oceânide melodiosa, napéia coleante –
respira na casa da névoa.

Philip Guston


O PEIXE SEM ESCAMAS

Também a luz em si mesma se perde.
Octavio Paz

A curva irônica de Gauss:
relâmpagos de puro cristal aclaram
os dois jardins da Babilônia.
Um jardim é Quf: capacidade de escutar
a santidade de nossa natureza.
Outro jardim é criatura que ondula cristais sonoros:
o mar grego okeanós.
No ano 1004, em algum palácio do oriente,
dentro do quarto junto do pomar,
o califa al-Hakim proibiu a venda
do peixe sem escamas
e grafitou nos muros escalavrados
um estudo sobre ótica.
O califa al-Hakim convidou para a corte
o astrônomo al-Haytham que seguiu o rastro
da Teoria da Intromissão, de Aristóteles,
--- segundo a qual a qualidade do que vemos
penetra surdamente no olho por meio do ar.
Anônimo




A fonte era atrás da Igreja dos Lavados – e fiquei horas num êxtase, língua à brasa de coxas, andando, no pensamento, em torno do poço com erva da tempestade no céu da boca. Bebi aguardente, benzi pedras e gatos.Vi, pela primeira vez, o aspecto interior da fonte de água mineral que me envolve e me incita ao linho. Sonhei, chuva a chuva, o abismo em que me precipitei nulo. Escutei em meus tímpanos o bosque de uma voz que desfiava uma barca na correnteza. Retirei da sombra a meu Lautréamont íntimo, a meu ser colossal, e tirei-me a ferros das entranhas de mim mesmo. Devaneio entre o bairro de água Branca e o bairro dos Paulas.

Gozo antecipadamente o prazer de ir tocar as coxas de uma das três mulheres do sabonete Araxá. Uma hora estou aqui deitado nas folhas das folhas de relva, outra hora estou lá, e pratico ablução com areia embaixo de um baobá, vendo os ângulos algumas vezes cáusticos do absurdum – bate o fino tambor de Dennis Radünz: absurdum, absurdum, absurdum.

Tornamo-nos cadáveres, ainda que falsos, até atingirmos aquele ponto da ilusão em que a própria ilusão se destroça, onde já não distingüimos quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Porque, de resto, o que fingimos é isto, fingimos ser cadáveres e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com essa vidraça – ou a vida –, é estarmos em desacordo com nós próprios e com esses talhos fundos sobre a fauce, como feitos por dentes de garfo.

O absurdo é o divino e eu passo por entre lianas, alcanço o retábulo de pedra e nele adormeço. Acordo para estabelecer a seguinte teoria: o mar assina oráculo na carapaça da lagosta, depois age contra ela, para justificar o quanto é oco esse oráculo e ocas as nossas ações e as teorias que as vivificam.

Talhar uma tainha na nuvem, e logo em seguida agir contrariamente ao mar e seguir por essas espumas. Ter, nos gestos todos, jorro de água e, no pensamento, uma loja de cristais; gestos aquáticos e o inferno é esse gato persa que penetra surdamente na loja de cristais e os cristais – tensos todos – confidenciam que nem somos gato persa nem pretendemos ser nuvens. Adquirir um livro para ler nas páginas desertas a pétala, o salmão e, se pétala de salmão é escama, também é selo de poesia. Ir a concertos para não escutar os cellos suntuosos de Brahms nem para ver o Mister Wong que sempre lá está (no auditório de um concerto, todo calvo é sempre o Mister Wong); dar longos passeios por cima das ondas, andar no bosque vazio por estar farto de andar no bosque vazio e ir passar domingos com a cabeça embaixo do travesseiro só porque ali o céu não nos aborrece.

Agora, que me oprime a roda-de-ferro na fronte, aquela angústia antiga me conta que chovem fios de mel na carpa, por vezes bebo o andamento dela num aquário e respiro deitado numa das longas folhas da bananeira. E como, ao sair eu, o vento verificasse que a garrafa de vinho ficou pela metade, o vento bateu com a cortina na garrafa, aliviou-a de repente de seu líqüido e o vento se afastou.

Hopper e Fernando Pessoa


A banhista

Gustave Doré


A pálpebra da banhista
encostou na pele do jarro,
porque fazia 40 graus
à sombra do cipreste.

O real, o um do jarro,
é antecedido pela palavra jarro,
pelo que em Deus já é jarro,
mesmo sem jarro ser ainda.

Enquanto jarro-coisa, o jarro é irreal,
e a pálpebra da banhista
continua encostada na pele do jarro.

Agora, para que respire,
o inexistente jarro-coisa
converte-se no uso do jarro-palavra,
onde a banhista encosta a pálpebra.